A formação histórica de Pernambuco não pode ser contada ignorando-se as heranças indígenas, não apenas nos costumes, mas na crônica do Estado, na genética das populações e na ‘cultura-aculturada‘ da região
Antes de 1500, no território correspondente ao atual estado de Pernambuco, viviam na faixa litorânea os tupis. No agreste e sertão, os não tupis, chamados “tapuias” pelos tupis. Originários da região do rio Madeira, na Amazônia, de onde tinham saído havia mais de mil ou dois mil anos, os tupis pouco interagiam com os nativos do interior. Falavam línguas diferentes. Tinham culturas muito diferentes. Mais avançados em tecnologias como tecelagem, cerâmica e canoas, hábeis no arco e flecha, os tupis eram em geral temidos pelos tapuias.
Migrações e Expansionismo
Se o andaluz Pinzón foi mal recebido pelos tupis da ponta logo batizada Cabo de Santo Agostinho, os portugueses e franceses encontrariam melhor acolhida. Notáveis por falarem o mesmo idioma e cultivarem as mesmas crenças e costumes por milhares de quilômetros povoados por eles, os tupis não conheciam unidade política. As aldeias eram rivais entre si.
Seminômades, se fixavam em um lugar por cerca de 10 anos, enquanto podiam extrair o melhor do solo após a derrubada da mata. Cultivavam mandioca, transformada em farinha e polvilho. Para completar a dieta, pescavam e caçavam. Garantiam a exogamia e a expansão de territórios por um fenômeno batizado “profetismo” pelos antropólogos. De tempos em tempos, um profeta recolhia indivíduos de aldeia em aldeia e liderava uma migração a lugares distantes, em busca da “terra sem males”. A presença dos europeus acelerou o costume, levando muitos a migrar ao litoral do Maranhão.

A relação com os europeus começou com escambo: pau-brasil em troca de ferramentas, facas, espelhos e uma variedade de produtos d’além-mar. Passaram da Idade da Pedra Lascada ao domínio do que de mais avançado havia no tempo do dia para a noite. Nos litorais dos atuais Sergipe, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, predominavam nos primeiros tempos as relações com os franceses. Como estes não se fixassem na terra, pediam dos indígenas não mais que usassem seus novos machados de ferro para cortar pau-brasil e transportar os toros aos navios. Com os portugueses, a partir de Pero Capico, não bastava. Era preciso colaborar na lavoura da cana-de-açúcar e no engenho. Os tupis de Pernambuco resistiram à novidade. Entre eles, apenas as mulheres se ocupavam das roças. Aos homens era estranho o trabalho da lavoura.
Aculturação
Os portugueses os chamariam caetés, potiguaras, tupinambás e tabajaras, conforme cooperassem ou resistissem. Batismos de europeus, que queriam enxergar grupos distintos. Os tupis ignoraram inicialmente as nominações. Para eles, tupis eram tupis, simples assim.
Duarte Coelho e Jerônimo de Albuquerque, trazendo com eles centenas de compatriotas, fundando as vilas de Igarassu e Olinda, buscaram de todas as formas a cooperação dos tupis. Deliberadamente, cometerem etnocídio, também chamado aculturação. Os costumes nativos não resistiram à introdução dos europeus, a começar pela religião católica, a que deviam se converter. Assim, Muira Ubi virou Maria do Espírito Santo Arcoverde, e uma filha dela com Jerônimo fundou, com o florentino Filippo, a família Cavalcanti pernambucana.
Os ditos mamelucos, ou mazombos, frutos da união de homens portugueses com mulheres tupis, rápido se fizeram a nobreza da terra, a elite dos engenhos. Para efeitos de alteridade, passavam a ser contados como brancos, enquanto os que viviam nas aldeias, depois nos aldeamentos dos padres, permaneciam marcados como índios, uma imposição mais europeia do que nativa. Por mais que a civilização pernambucana prezasse os tupis, lhes dessem privilégios e mercês, não os aceitaram puros em seus centros urbanos. Não teriam lugar na sociedade, senão à margem. O indígena se fez estrangeiro em seu próprio país, fenômeno que se repetiria com os tapuias no interior.
A Guerra Justa em Pernambuco
Se os entendimentos e desentendimentos iniciais foram muitos, as rebeliões organizadas foram poucas. O cerco de Igarassu ficou famoso porque Hans Staden, alemão de passagem, o registrou e contou o vivenciado na Europa. Pode ter exagerado, mas outras fontes asseguram que a presença europeia na vila pioneira esteve por um fio. Os franceses possivelmente tenham atuado como incentivadores do ataque, como efetivamente faziam com os tupis ditos caetés, localizados em geral ao sul de Olinda.
A primeira guerra justa de Pernambuco, guerra declarada pelo Estado Português a um grupo visto por inimigo, se deu contra os caetés, a partir de 1557. Os combatentes estatais eram quase todos tupis também, os aliados.

Não se imagine uma tropa europeia em formação de linha, com armas de fogo, enfrentando formação análoga tupi, com arcos e flechas, em campo aberto. Isso não aconteceu. Os combates raramente se davam em embate frontal, em linha. As armas de fogo logo passaram a ser empregadas dos dois lados, como também as bestas e os cavalos. As flechas, igualmente, pois eram tupis o grosso da tropa pernambucana. Os flecheiros indígenas servirão por séculos ao aparato militar oficial. Também nas brigas entre europeus, mais tarde nas entre brasileiros, por hábito e sucessão.
Crônicas ‘Indigenistas’
Os caetés sumiram das crônicas, secundados pelos tupinambás e tabajaras. Não significa que tenham sido todos mortos ou os portugueses tenham entendido serem todos tupis. É que cessou a oposição, mantida pelos tupis chamados potiguaras ao norte, o que culminaria na conquista da Paraíba, em 1585. Conquista portuguesa aos potiguaras? Aos franceses, sobretudo, enquanto ao lado dos portugueses e tupis aliados lutaram também espanhóis.
É impossível saber quantos viventes havia em 1500 nas terras que viriam a ser Pernambuco. Não se sabe ainda quantos pereceriam no primeiro século de contato às doenças trazidas por europeus e africanos, para as quais os ameríndios não tinha defesas naturais. É provável que houvesse mais tupis dos que tapuias, dada a abundância de recursos naturais do litoral, recursos melhor aproveitados pelos tupis, também habitantes do baixo vale do São Francisco. O curso médio do rio era dos tapuias, quase todos nômades, alguns agricultores, outros apenas caçadores-coletores em uma terra que oferecia muito pouco. Sabe-se de grupos a percorrer centenas de quilômetros todos os anos em busca de víveres.
Os primeiros tapuias a entrar nas crônicas são os tarairiús, mais presentes nos atuais Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Os entre eles liderados pelo rei Janduí se aliam aos holandeses e causam estragos a portugueses e potiguaras aliados, estes comandados desde 1630 pelo menos por Antônio Filipe Camarão, mais tarde herói de Guararapes, cuja boa fama se espalhou pela Europa. Os batavos tinham Pedro Poti, primo de Filipe, como potiguara aliado.

As cartas trocadas entre os dois, escritas na língua tupi, dizem muito sobre como pensavam as lideranças tupis. Mantinham a identidade americana, pesando os prós e contras das relações com os europeus e as possibilidades de negociação envolvidas. Tão inteligentes quanto qualquer grupo humano, rejeitavam obediência passiva, buscando o melhor para suas gentes.
Formação Inicial do Pernambuco
Os tarairiús foram poupados de revanche por disposição do acordo de paz entre Portugal e Países Baixos. Não duraria, eclodindo novo conflito anos depois, já sob a liderança de Canindé, sucessor de Janduí. Evoluiria para a chamada Guerra dos Bárbaros, no vale do rio Piranhas-Açu. Tropas de Pernambuco foram enviadas à região. Ninguém venceu, terminando o conflito com outro acordo de paz, dessa vez entre a nação portuguesa e a nação Janduí, assinado em Salvador pelo representante de Canindé e pelo governador-geral do Brasil. Nas batalhas, destacou-se o Terço do Camarão, formado por tupis étnicos, não necessariamente genéticos. Estava entre as forças militares mais garbosas, eficientes e respeitadas da capitania, porém, em tempos de paz, tinham de regressar aos aldeamentos.

Povoaram os sertões por iniciativa dos Ávila, da Casa da Torre, da Bahia. Com tupis e tapuias aliados, mamelucos e reinóis, estabeleceram fazendas de gado pelo interior do Nordeste. Enfrentaram mínima resistência, encontrando maior concentração de indígenas no médio São Francisco, notadamente em Rodelas. Em 1669, João Fernandes Vieira, outro herói de Guararapes, funda em terras suas o aldeamento de Ararobá, de indígenas xucurús, que viria a se tornar, em 1762, o município de Cimbres. Dali, em 1691, parte expedição xucurú de combate aos Hoé Hoé, arredios à civilização. Entre os aliados, estavam ainda os Xocó, Carnijó e Carapotó.
Em 1698, os curraleiros pedem ao governador de Pernambuco que estabeleça aldeamentos de “gentio manso” no vale do São Francisco para protegê-los de ataques de bandos avulsos. Trinta anos antes, com a mesma finalidade, nomearam o chefe dos cajayó como capitão de tropa indígena de ordenança, com as honrarias e liberdades correspondentes. Tapuias também foram destacados para combater em Palmares, estabelecendo aldeias na região no pós-guerra, para garantir vigilância e combater eventuais novos quilombos. Os negros os temiam mais que tudo.
Ocupação: Visões e Consequências
Não há relatos em primeira pessoa dos cariris ou tarairiús, grandes grupos não tupis do interior, sobre como eles viam a chegada da cultura de matriz europeia aos sertões, mas tiveram motivos para lamentar. Privaram os caçadores-coletores entre eles das melhores áreas de caça e coleta, ocupadas pela nova civilização. Não poucos se apresentaram famintos nos aldeamentos e sedes de fazendas, aceitando qualquer destino em troca de comida. Os fazendeiros costumavam empregar os homens nas suas forças armadas de defesa da propriedade; as mulheres em trabalhos manuais, também como ventres disponíveis à reprodução dos forasteiros, quase todos homens.
Associaram os bandidos, ladrões de gado e pertences outros, a grupos indígenas incivilizados. Podia ser, mas já no século XVII viviam entre eles pobres do litoral, migrados aos sertões em busca de aventuras e de liberdade ampla. Os indígenas os abrigavam. Quando enviaram tropas regulares na repressão aos Palmares e aos Janduís, a maior parte dos contingentes desertou. Fixaram-se ora nos povoados de brancos e mestiços, ora em fazendas, ora em aldeias indígenas, em que foram bem recebidos.
Como as tropas regulares eram em geral formadas por vadios e criminosos portugueses, mamelucos e pardos, o governo não lamentava as deserções. Conquanto não voltassem ao litoral, era bom negócio, pois se povoava de graça os sertões, em que aqueles indesejados podiam delinquir sem causar tantos prejuízos.

À influência dos missionários católicos, dos fazendeiros, das etnias aculturadas, das autoridades, somou-se a desses pobres do açúcar, responsáveis em grande medida por dar feições pernambucanas aos sertões, se fazendo presentes ainda nos grupos de salteadores armados. Culpar somente os índios pelos ataques era mais fácil.
As ‘Missões’ de Pernambuco
Em 1729, havia 22 aldeamentos missionários de indígenas em Pernambuco. Em 1760, às vésperas da extinção desses enclaves comandados por padres, restavam 14. Além de Cimbres, foram criados dois municípios indígenas: Assunção, abrigando kariris, xocós, oés, pipipãs e paraquiós; e Santa Maria, em que os 196 habitantes eram das etnias tamaquió e umã, além das presentes também em Assunção.
Assunção e Santa Maria teriam existência breve, incorporados a novos municípios no século XIX, em que os indígenas passam a estar por sua própria conta. É-lhes então opcional abandonar as identidades nativas, das quais mal guardam a língua e os costumes. Se mantêm o pertencimento é menos por vontade genuína do que por imposição da sociedade pernambucana. Os núcleos urbanos emergentes, como Cabrobó e Flores, os rejeitam como citadinos. Se apresentando a vida nas fazendas tão pobre quanto nas serras e brejos em que se refugiam e se reagrupam, muitos preferem a liberdade, ainda que constantemente perseguidos. Eventualmente, são recrutados para as guerras do tempo, no mais das vezes para apoiar causas do Reino e do Império contra os revoltosos pernambucanos.
Remanescentes e Preservação
Entre os remanescentes do século XXI, conta-se grupos Atikum, Pipipã, Kambiwá, Truká, Xucurú, Pankaruru, Pankaiuká, Tuxi, Tuxá, Pankará e Kapinawá, todos de identidades pelo menos parcialmente reconstruídas, todos longe do litoral. Juntos, não chegam a 50 mil indivíduos.
Em compensação, estão em Pernambuco os fulni-ô, únicos indígenas a preservar o próprio idioma em toda região Nordeste do Brasil. Eles falam ia-tê e participam do ritual do ouricuri, secreto, só deles. Não reconhecem como seus os que se casam com não fulni-ôs e os filhos de tais uniões.
A história dos fulni-ô é a melhor documentada nas crônicas desde 1749. Eles reivindicaram a demarcação de suas próprias terras no século XIX, entrando em disputa com os moradores não índios de Águas Belas. Em 1929, recebem seus lotes, não coletivos, mas um por família mononuclear, parte deles na zona urbana do município. Acabam por arrendar parte dos lotes rurais, recebendo os aluguéis regularmente. Na parte urbana, permitem que não índios construam nos terrenos, desde que paguem uma espécie de foro. Os que permanecem em seus lotes produzem excedentes, feijão, milho, mandioca e algodão, vendidos na feira local.
Adotando a moralidade pernambucana de forma exemplar, mandam os filhos à escola e, de tempos para cá, mantêm em geral boa relação com os não índios. Não precisaram ser refratários ao lucro e à modernidade para preservarem sua identidade, a mais bem preservada afinal.
Milhões de pernambucanos carregam genes matrilineares indígenas. Patrilineares, nem tanto. Foram consumidos nas guerras, guerras que não eram suas, como Guararapes. Que os pernambucanos e os brasileiros lhes reservem por isso um tanto de gratidão.
Texto para o próximo vídeo do canal Enciclopédia de História: História dos Índios de Pernambuco
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