O Liberalismo: A Verdadeira Tradição Escolástica em Espanha

Os fundamentos centrais do Liberalismo nos intelectuais da Escolástica em Espanha, contrários aos desvios da Escola Anglo-Saxã

O Liberalismo é uma escola de pensamento (filosófico e econômico) que defende a máxima limitação do poder coercitivo do estado sobre os indivíduos e a sociedade civil. Sendo assim, formam o ideário liberal:

  • Economia de Mercado (também denominada “sistema capitalista” ou “livre iniciativa”);
  • A Liberdade de Comércio (Livre Comércio);
  • A livre circulação de pessoas, bens e capital (em geral);
  • Manutenção d’um sistema monetário rígido, que impeça a manipulação inflacionária pelos governantes;
  • O Estado de Direito (no qual todos os indivíduos, incluindo os governantes, estão submetidos aos mesmos códigos de leis mínimas, em seu sentido material: normas jurídicas, basicamente de Direito Civil e Penal, ‘abstratas’ e igualmente aplicáveis a todos);
  • Limitação do poder de governo ao mínimo necessário para garantir e defender adequadamente o direito à vida, à propriedade privada, às posses adquiridas pacificamente e ao cumprimento das promessas e contratos;
  • Limitar e controlar os gastos públicos;
  • O princípio do equilíbrio orçamentário e a manutenção de um baixo nível de tributação;
  • Um sistema estrito de separação dos poderes políticos (legislativo, executivo e judiciário);
  • Combater qualquer indício de Tirania;
  • O princípio da autodeterminação, segundo o qual qualquer grupo social deve poder escolher livremente a organização política que deseja formar ou a que Estado deseja ou não aderir;
  • Procedimentos democráticos para eleger líderes, sem que a democracia seja usada, em nenhuma circunstância, como álibi para justificar a violação do Estado de Direito ou a coerção de minorias;
  • Uma ‘ordem mundial’ baseada na paz e no livre comércio voluntário entre todas as nações.

Tradição e Liberalismo

Portanto, esses princípios básicos constituem os pilares da civilização ocidental. Mas também sua formação, articulação, desenvolvimento e aperfeiçoamento estão entre as conquistas mais importantes da história do pensamento humano. Tradicionalmente afirma-se que a doutrina liberal tem suas origens no pensamento da Escola Escocesa do século XVIII, ou na ideologia da Revolução Francesa. Todavia, rastreamos suas origens até mesmo até a tradição mais clássica do pensamento filosófico grego e da ciência jurídica romana. Por exemplo, sabemos graças a Tucídides (Guerra do Peloponeso) como Péricles observou que em Atenas:

A liberdade de que desfrutamos no nosso governo estende-se também à vida ordinária, onde longe de exercer uma vigilância zelosa sobre todos e cada um […] Não sentimos raiva porque o nosso próximo faz o que quer.

Uma das mais belas descrições do princípio liberal da igualdade de todos perante a lei pode ser encontrada na Oração Fúnebre de Péricles.

Mais tarde, em Roma, descobriu-se que a lei era basicamente consuetudinária. Porém, também que as instituições legais (como as linguísticas e econômicas) resultaram d’um longo processo evolutivo e incorporaram um enorme volume de informações e conhecimento. Logo, excedia em muito a capacidade mental de qualquer governante, por mais sábio e bom que fosse. Sendo assim, sabemos por Cícero (De re publica, II, 1-2) que para Catão

A razão pela qual nosso sistema político era superior aos de todos os outros países era esta: os sistemas políticos de outros países tinham sido criados pela introdução de leis e instituições de acordo com o julgamento pessoal de indivíduos particulares. Como Minos em Creta e Licurgo em Esparta… Por outro lado, nossa república romana não se deve à criação pessoal de um homem, mas de muitos. Ela não foi fundada durante a vida de um indivíduo em particular, mas ao longo de uma série de séculos e gerações. Pois nunca houve um homem no mundo inteligente o suficiente para prever tudo, e mesmo que pudéssemos concentrar todos os cérebros na cabeça de um único homem, seria impossível para ele levar tudo em conta ao mesmo tempo, sem ter acumulado a experiência que vem da prática ao longo de um longo período de história.

Na Idade Média, preservou-se e reforçou-se o cerne dessa ideia essencial, que constituirá o argumento de Ludwig von Mises sobre a impossibilidade teórica do planejamento socialista. Contudo, isso ocorreu graças ao humanismo cristão e pela filosofia tomista do direito natural, concebida como estrutura ética anterior e superior ao poder de qualquer governo terreno.

Escolástica e o Século de Ouro Espanhol

Pedro João de Olivi, São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença, entre outros, teorizaram sobre o papel fundamental que a capacidade empreendedora e criativa humana desempenha na condução da economia de mercado e da civilização. Entretanto, o testemunho desta linha de pensamento é recolhido e aperfeiçoado pelos grandes teóricos escolásticos durante o Século de Ouro Espanhol. Mas a tal ponto, que um dos maiores pensadores liberais do século XX, o austríaco Friedrich A. Hayek, Prémio Nobel da Economia em 1974, afirmou:

Os princípios teóricos da economia de mercado e os elementos básicos do liberalismo económico não foram concebidos, como se acreditava, pelos calvinistas e protestantes escoceses. Mas, sim, pelos jesuítas e membros da Escola de Salamanca, durante o Século de Ouro Espanhol.

Sendo assim, Diego de Covarrubias y Leyva, Arcebispo de Segóvia e ministro de Filipe II, já em 1554 expôs impecavelmente a teoria subjetiva do valor. Teoria sobre a qual gira toda a economia de livre mercado. Afirmou que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objetiva, mas da estimativa subjetiva dos homens, ainda que tal estimativa seja tola”. Ainda acrescenta para ilustrar sua tese que: “Nas Índias o trigo é mais valorizado do que na Espanha, porque lá os homens o valorizam mais, apesar de a natureza do trigo ser a mesma em ambos os lugares”.

Outro notável escolástico, Luis Saravia de la Calle, baseado na concepção subjetivista de Covarrubias, descobriu a verdadeira relação entre preços e custos no mercado. Portanto, no sentido de que são os custos que tendem a seguir os preços e não o contrário, Ou seja, antecipou uma refutação dos erros da teoria objetiva do valor de Karl Marx e seus sucessores socialistas. Assim, em sua “Instrucción de mercaderes  (Medina del Campo 1544)” lemos:

Engana-se muito quem mede o preço justo de uma coisa segundo o trabalho, os custos e os perigos de quem negocia ou fabrica a mercadoria. Porque o preço justo nasce da abundância ou da falta de mercadorias, comerciantes e dinheiro. Não dos custos, do trabalho e dos perigos.

Conceitos Básicos do Liberalismo na Escolástica Espanhola

Outra contribuição notável de nossos escolásticos é a introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim, concurrentium). Portanto, entendido como o processo empreendedor de rivalidade que impulsiona o mercado e o desenvolvimento da sociedade. Essa ideia os levou a concluir que o chamado “modelo de preços de equilíbrio”, jamais poderá ser conhecido. Tal modelo é usado pelos teóricos socialistas para justificar o intervencionismo e o planejamento de mercado.

Raymond de Roover (“Scholastics Economics”, 1955) atribui a Luis de Molina o conceito dinâmico de concorrência. Logo, entendido como “o processo de rivalidade entre compradores que tende a aumentar os preços”. Ou seja, que nada tem a ver com o modelo estático de “concorrência perfeita”. O mesmo que os atuais “teóricos socialistas de mercado” ingenuamente acreditam poder simular num regime sem propriedade privada.

No entanto, é Jerónimo Castillo de Bovadilla expõe melhor essa concepção dinâmica de livre concorrência entre empresários em seu livro “Política para corregidores”, publicado em Salamanca em 1585. Bovadilla indica a essência mais positiva da concorrência consistindo em tentar “emular” o concorrente. Mas também enuncia a seguinte lei econômica, base da defesa do mercado por todo liberal: “Os preços dos produtos cairão com a abundância, a emulação e a concorrência dos vendedores”.

Contribuições Jesuíticas e do Direito Natural

E quanto à impossibilidade de os governantes conhecerem os preços de equilíbrio e outros dados necessários para intervir no mercado? Aqui, destacam-se as contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas. Juan de Lugo questiona qual seria o preço de equilíbrio Sendo assim, concluiu já em 1643 que depende de tantas circunstâncias específicas que só Deus pode conhecê-lo (“pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum“). E Juan de Salas, em 1617, referindo-se às possibilidades de um governante conhecer a informação específica criada, descoberta e manipulada na sociedade civil: “quas exacte understandere et ponderare Dei est non hominum“. Ou seja, que somente Deus, e não os homens, compreende e pondera com precisão a informação e o conhecimento manipulados por um livre mercado. Logo, om todas as suas circunstâncias particulares de tempo e lugar.

Portanto, Juan de Lugo e Juan de Salas anteciparam em mais de três séculos as contribuições científicas mais refinadas dos pensadores liberais mais notáveis ​​(Mises, Hayek).

Por outro lado, não devemos esquecer os grandes fundadores do Direito Internacional: Francisco de Vitoria, e Francisco Suárez e sua escola de teóricos do direito natural. Pois, com brilhantismo e coerência retomaram a ideia tomista da superioridade moral do direito natural sobre o poder do Estado, aplicando-a com sucesso a múltiplos casos particulares. Como a crítica moral da escravização dos nativos americanos na América recém-descoberta, exigia uma posição intelectual clara e rápida. Mas, sem dúvida, o mais liberal de nossos escolásticos foi o grande padre jesuíta Juan de Mariana (1536-1624). Pois levou a doutrina liberal da superioridade da lei natural sobre o poder do Estado às suas últimas consequências lógicas. Uma doutrina adotada por importantes filósofos liberais como Murray Rothbard e Robert Nozick.

Legitimidade do Tiranicídio

De particular importância é a doutrina sobre a legitimidade do tiranicídio, que Mariana desenvolve em seu livro “De rege et regis institutione” (1599). Mariana chama figuras históricas como Alexandre, o Grande, e Júlio César de tiranos e argumenta que qualquer cidadão está justificado em assassinar qualquer um que tiranize a sociedade civil. Considerando impor impostos sem o consentimento do povo ou impedir que um parlamento livremente eleito se reúna, entre os atos de tirania. Mas também inclui a construção de obras públicas faraônicas, que, como as pirâmides do Egito, são sempre financiadas pela escravização e exploração de súditos, ou a criação de forças policiais secretas para impedir os cidadãos de reclamarem e se expressarem livremente.

De monetae mutatione (1609), é outra obra essencial de Mariana. Posteriormente traduzida para o espanhol como “Tratado y discurso sobre la moneda de vellón que al actual se minta en Castilla y de unos desordenes y abuses“. Nesta obra notável, Mariana considera tirano qualquer governante que desvalorize o conteúdo metálico das moedas, impondo o odioso imposto inflacionário aos cidadãos sem o seu consentimento, ou criando privilégios fiscais e monopólios. Mas também critica o estabelecimento de preços máximos para “combater a inflação”, propondo reduzir gastos públicos como principal medida de política econômica de equilíbrio orçamentário.

Descentralização em Mariana

Finalmente, em 1625, o Padre Juan de Mariana publicou outro livro intitulado “Discurso sobre las enfermedades de la Compañía”. Nessa obra, aprofunda a ideia liberal da impossibilidade do governo organizar a sociedade civil com base em mandatos coercitivos, devido à falta de informação. Referindo-se ao governo, Mariana afirma: “é um grande erro que os cegos queiram guiar aos que enxergam”. E acrescenta que o governante

Não conhece o povo, tampouco os fatos. Pelo menos, não com todas as circunstâncias envolvidas, das quais depende o sucesso. É inevitável que muitos e graves erros se concretizem, e por causa deles o povo se desgoste e despreze um governo tão cego.

Mariana conclui que “poder e comando são loucura” e que quando “as leis são numerosas demais; como nem todas podem ser cumpridas, ou mesmo conhecidas, o respeito por elas se perde completamente”.

Infelizmente, baniram na teoria e na prática toda tradição liberal do pensamento hispânico, como indicou Francisco Martínez Marina (Teoría de las Cortes o Grandes Juntas Nacionales de los Reinos de León y Castilla). Os ‘Austrians’ e os Bourbon produziram uma “monstruosa reunião dos poderes numa só pessoa, o abandono e a abolição das Cortes e séculos de escravidão ao mais horrível despotismo”. Sendo assim, consolidou-se no país um quadro político e social intolerante e intervencionista. Portanto, alheio às tradições genuínas, representativas e liberais dos antigos reinos da Espanha.

Banimento da Tradição Escolástica no Liberalismo

Substituíram a antiga tolerância e modus vivendi entre as três religiões (judeus, mouros e cristãos) da época de Afonso X, o Sábio, pela intolerância religiosa dos ‘Reis Católicos’ e sucessores. Américo Castro (La realidad histórica de España) e outros interpretaram como desvio mimético da cultura e da sociedade espanholas que, paradoxalmente, refletiu e incorporou em sua essência mais íntima as características mais negativas de seus “inimigos” seculares. Ou seja, o fundamentalismo religioso muçulmano, que justifica a Guerra Santa contra infiéis, e a obsessão pela pureza de sangue, característica do povo judeu.

D’outro lado, não absorveram a proverbial iniciativa e o espírito empreendedor dos comerciantes e artesãos hebreus e mouros, que constituíam a espinha dorsal econômica do país, até sua expulsão. Na Espanha, menosprezaram o empreendedorismo como impróprio de cristãos-velhos. Ainda hoje o sucesso econômico é desvalorizado socialmente e criticado com inveja destrutiva. Em vez de considerarem sinal saudável e necessário do avanço da civilização, a imitar e fomentar.

Se somarmos a isso a “Leyenda Negra”¹, promovida pelo mundo protestante e anglo-saxão com o objetivo de desacreditar tudo o que era espanhol, compreenderemos a solidão e o vazio ideológico enfrentados por iluministas espanhóis do século XVIII. Por exemplo, por Campomanes e Jovellanos, e pelos pais fundadores da nação reunidos nas Cortes de Cádiz. Este redigiriam nossa primeira Constituição de 1812, e foram os primeiros no mundo a se autodenominar com o termo, por eles introduzido, “liberais”.

¹Propaganda antihispânica e anticatólica, para desacreditar a Espanha Católica. Leitura recomendada: La Leyenda Negra: Historia del Odio a España: el relato hispanófobo externo e interno, de Alberto G. Ibáñez (nota do editor).

Crítica ao ‘Liberalismo’ da Escola Clássica Anglo-Saxônica

A situação no restante do mundo intelectual europeu não evoluiu muito melhor do que na Espanha. O triunfo da Reforma Protestante desacreditou o papel da Igreja Católica como limite e contrapeso ao poder secular dos governos, e o reforçou. Além disso, o pensamento protestante e a recepção imperfeita no mundo anglo-saxão da tradição liberal do direito natural por meio dos “escolásticos protestantes” Hugo Grotius e Pufendorf explicam a regressão significativa que Adam Smith representou em relação ao pensamento liberal anterior.

Como Murray N. Rothbard corretamente aponta (Economic Thought before Adam Smith, 1995). Sendo assim, Adam Smith abandonou as contribuições anteriores focadas na teoria subjetiva do valor, na função empreendedora e no interesse em explicar os preços no mercado real. E as substituiu pela teoria objetiva do valor-trabalho. Ou seja, aquela sobre a qual Marx construiu mais tarde, como uma conclusão natural, toda a teoria socialista da exploração.

Além disso, Adam Smith concentra-se principalmente em explicar o “preço natural” de equilíbrio de longo prazo. Ou seja, um modelo de equilíbrio no qual a função empreendedora está visivelmente ausente e presume que todas as informações necessárias estão disponíveis. Esse modelo será posteriormente utilizado por teóricos do equilíbrio neoclássico para criticar supostas “falhas de mercado”. Mas também para justificar o socialismo e a intervenção estatal na economia e na sociedade civil.

Um Liberalismo Morno

Por outro lado, Adam Smith imbuiu a economia com o calvinismo. Por exemplo, ao apoiar a proibição da usura e distinguir entre ocupações “produtivas” e “improdutivas”. Finalmente, Smith rompeu com o laissez-faire radical de seus predecessores continentais do direito natural (espanhol, francês e italiano). O escocês introduziu na história do pensamento um “liberalismo” morno. Logo, tão repleto de exceções e nuances que muitos “socialdemocratas” atuais podem até aceitá-lo.

Os sucessores de Adam Smith acentuaram a influência negativa da Escola Clássica Anglo-Saxônica sobre o liberalismo. Especialmente Jeremy Bentham, que inoculou a filosofia liberal com o bacilo do utilitarismo mais restrito. Portanto, facilitou o desenvolvimento d’uma análise pseudocientífica de custos e benefícios (que se acredita serem conhecidos). Mas ainda, o surgimento d’uma tradição de engenheiros sociais que buscam moldar a sociedade a seu gosto, utilizando o poder coercitivo do Estado.

Na Inglaterra, Stuart Mill culminou essa tendência com sua apostasia do Laissez-faire e suas numerosas concessões ao socialismo. Enquanto na França, o triunfo do racionalismo construtivista de origem cartesiana explica o domínio intervencionista da École Polytechnique e o socialismo cientificista de Saint-Simon e Comte (ver F.A. Hayek, The Counter-Revolution of Science, 1955). Um estrago que os liberais franceses na tradição de Jean-Baptiste Say, agrupados em torno de Frédéric Bastiat e Gustave de Molinari, mal conseguiram conter.

Consequências na Teoria Liberal Contemporânea

Essa embriaguez intervencionista no conteúdo doutrinário do liberalismo do século XIX foi fatal para a evolução política do liberalismo contemporâneo. Pois o “pragmatismo’ vitimou, um após o outro, os vários partidos políticos liberais. Entretanto, no interesse de manter o poder a curto prazo, também concordaram com políticas de compromisso que traíram seus princípios essenciais. Logo, confundiram o eleitorado e, em última análise, facilitaram o triunfo político do socialismo. Assim, o Partido Liberal Inglês acabou desaparecendo na Inglaterra, engolido pelo Partido Trabalhista, e algo muito semelhante aconteceu no resto da Europa.

A confusão no nível político e doutrinário é tão grande que, em muitas ocasiões, os intervencionistas mais conspícuos, como John Maynard Keynes, acabam se apropriando do termo “liberalismo”. Inclusive, na Inglaterra, nos Estados Unidos e, em geral, no mundo anglo-saxão, usam para designar a socialdemocracia intervencionista e o Estado de Bem-Estar Social. Isso força os verdadeiros liberais a buscarem outro termo definidor (“liberais clássicos”, “libertários conservadores” ou, simplesmente, “libertários”).

Neste contexto de confusão doutrinária e política, não surpreende que uma verdadeira revolução liberal jamais haja consolidado-se em nosso país. Ainda assm, uma distinta tradição do liberalismo mais genuíno possa ser distinguida no século XIX, com representantes tão conspícuos como Laureano Figuerola y Ballester, Álvaro Flórez Estrada, Luis María Pastor e outros. Porém, o liberalismo morno da Escola Anglo-Saxônica e o racionalismo jacobino da Revolução Francesa influenciaram seu desenvolvimento doutrinário. Aliás, a tradução espanhola de A Riqueza das Nações, de José Alonso Ortiz, já havia sido publicada em Santander, em 1794.

Vazio Doutrinário

Politicamente, o liberalismo espanhol confrontou primeiro as poderosas forças absolutistas e, em seguida, o pragmatismo divisionista dos “moderados”. Tudo isso num contexto de contínua e angustiante guerra civil. Assim sendo, o triunfo da Gloriosa Revolução Liberal de 1868 teve vida curta. Mas também na Restauração Canoviana de 1875, a tarifa protecionista triunfou e princípios liberais essenciais foram traídos. Por exemplo, na área da autodeterminação do povo cubano, a um custo tremendo para a nação em termos de sofrimento humano. E, já bem avançado o século XX, a perda de conteúdo doutrinário do Partido Liberal Democrata tornou-se cada vez mais evidente e culminou, em certa medida, no “social reformismo” de José Canalejas. Este imbuiu sua política de medidas intervencionistas e socializadoras, restabeleceu o serviço militar obrigatório e deu continuidade à política imoral e desastrosa de envolvimento militar gradual de nosso país no Marrocos.

Nesse contexto de vazio doutrinário, não surpreende que os poucos espanhóis que continuam a aceitar o termo “liberal” não acreditem no liberalismo como conjunto de princípios dogmáticos em prol da liberdade. Mas simplesmente como uma “disposição” caracterizada pela tolerância e abertura a todas as posições. Assim, para Gregorio Marañón (ver o “Prólogo” de seus Ensayos Lliberales):

Ser liberal é precisamente estas duas coisas: primeiro, disposição a chegar num entendimento com aqueles que pensam diferente; e segundo, nunca admitir que o fim justifica os meios. Mas, sim, pelo contrário, que são os meios que justificam o fim. Portanto, o liberalismo é uma forma de conduta. Logo, muito mais do que uma política.

Essa posição é amplamente compartilhada por outros grandes liberais espanhóis da primeira metade do século XX, como José Ortega y Gasset e Salvador de Madariaga. Isso explica em grande parte por que a proeminência política, primeiro durante a ditadura do General Primo de Ribera, depois durante a República e, posteriormente, durante o regime de Franco, nunca esteve nas mãos de verdadeiros liberais. Mas, sim, na esfera de ambos os extremos do intervencionismo. Ou seja, o socialismo operário ou fascismo ou socialismo conservador ou de direita, ou sob o controle de políticos jacobinos racionalistas, como Manuel Azaña.

Uma esperança ao Liberalismo no Século do Totalitarismo e do Estatismo

O século XX é tristemente lembrado como o século do estatismo e do totalitarismo de todos os tipos, que causou o maior sofrimento à humanidade. No entanto, os últimos vinte e cinco anos testemunharam um notável ressurgimento da ideologia liberal, que pode ser atribuído às seguintes razões: primeiro, o rearmamento teórico liberal liderado por um punhado de pensadores. A maioria dos quais pertence ou é influenciada pela Escola Austríaca. Uma escola fundada em Viena quando Carl Menger reviveu a tradição liberal subjetivista da Escolástica Espanhola, em 1871.

Entre outros teóricos, Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek se destacam acima de tudo. Pois previram primeiro o advento da Grande Depressão de 1929 como resultado do intervencionismo monetário e fiscal empreendido pelos governos durante os “felizes” anos vinte. Fizeram isso ao descobrirem o teorema da impossibilidade científica do socialismo devido à falta de informação e a explicar o fracasso das prescrições keynesianas. Um fracasso evidente com o surgimento da grave recessão inflacionária dos anos setenta.

Esses teóricos desenvolveram, pela primeira vez, um corpo completo e refinado de doutrina liberal. Do qual também participaram pensadores de outras escolas liberais menos comprometidas, como a Escola de Filosofia de Chicago (Knight, Stigler, Friedman e Becker), Além do “ordoliberalismo” da “economia social de mercado” alemã (Röpke, Eucken, Erhard). Mas também a chamada “Escola da Escolha Pública” (Buchanan, Tullock e os demais teóricos do “fracasso governamental”).

Revolução Liberal-Conservadora

Em segundo lugar, vale mencionar o triunfo da chamada revolução liberal-conservadora liderada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos Estados Unidos e na Inglaterra ao longo da década de 1980. Assim, de 1980 a 1988, Ronald Reagan implementou uma importante reforma tributária e reduziu a alíquota marginal do imposto de renda para 28%. Também desmantelou em grande parte a regulamentação administrativa da economia, gerando um significativo boom econômico que criou mais de 12 milhões de empregos em seu país. E mais perto de casa, Margaret Thatcher promoveu o programa de privatização de empresas públicas mais ambicioso já conhecido no mundo. Ela reduziu a alíquota marginal do imposto de renda para 40%, pôs fim aos abusos sindicais e iniciou um programa de regeneração moral que impulsionou fortemente a economia britânica. Antes sobrecarregada por décadas de intervencionismo do Partido Trabalhista e dos conservadores mais “pragmáticos” (como Edward Heath e outros).

Em terceiro lugar, talvez o evento histórico mais importante tenha sido a queda do Muro de Berlim e o colapso do socialismo na Rússia e nos países do Leste Europeu. Que agora se esforçam para construir suas economias de mercado sob o Estado de Direito. Todos esses fatos levaram à convicção de que o liberalismo e a economia de livre mercado são os sistemas político e econômico mais eficientes, morais e compatíveis com a natureza humana. Por exemplo, João Paulo II, quando questionado se o capitalismo é o caminho para o progresso econômico e social, respondeu o seguinte (ver Centesimus Annus, Capítulo IV, n.º 42):

Se por ‘capitalismo’ entendemos um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de ‘economia empresarial’, ‘economia de mercado’ ou simplesmente ‘economia livre’.

O Pensamento Espanhol no Ressurgimento do Liberalismo

O pensamento espanhol não ficou imune a esse ressurgimento global do liberalismo. Pensadores como Lucas Beltrán e Luis de Olariaga mantiveram a chama liberal acesa durante os longos anos do regime autoritário de Franco. Houve esforço significativo para estudar e popularizar as ideias liberais por professores, intelectuais e empresários reunidos em torno da sociedade liberal Mont Pèlerin. Fundada por Hayek em 1947.

Mas também pelo projeto Unión Editorial. Que nos últimos 25 anos traduziu, publicou e distribuiu incansavelmente as principais obras liberais escritas por pensadores estrangeiros e espanhóis em nosso país. Destacam-se entre eles os irmãos Joaquín e Luis Reig Albiol, Juan Marcos de la Fuente, Julio Pascual Vicente, Pedro Schwartz, Rafael Termes, Carlos Rodríguez Braun, Lorenzo Bernaldo de Quirós, Francisco Cabrillo, Joaquín Trigo, Juan Torras, Fernando Chueca Goitia e, como principal representante da tradição liberal subjetivista em nosso país, o professor Jesús Huerta de Soto.

Vida Política na Espanha

Primeiro no seio da extinta União do Centro Democrático através de Antonio Fontán e do falecido Joaquín Garrigues Walker. Depois veio o Partido Liberal Democrático de Antonio Garrigues Walker. Mas que integrado no Partido Reformista de Miguel Roca, não obteve representação parlamentar nas eleições de 1986. Posteriormente, a União Liberal de Pedro Schwartz e o Partido Liberal de Antonio Segurado tiveram representação parlamentar.

Mas ambos integrados primeiro na Aliança Popular e, posteriormente, na Coalizão Popular (1982-1987). E após os anos de governo do PSOE. Nos quais, apesar dos ataques ao princípio liberal de separação de poderes, uma tímida corrente liberal pôde ser distinguida por Miguel Boyer e Miguel Ángel Fernández Ordóñez. Porém, tanto o Presidente do Governo do Partido Popular, José María Aznar, como alguns de seus ministros mais proeminentes (como Esperanza Aguirre e outros) não hesitaram em se autodenominar os atuais herdeiros do liberalismo e do centrismo político.

Ascensão do Liberalismo?

Dada a trágica trajetória do socialismo ao longo deste século, não é descabido pensar que o liberalismo se apresenta como o ideal político e econômico com maiores chances de sucesso no futuro. Embora existam algumas áreas em que a liberalização continua a suscitar dúvidas e divergências. Por exemplo:

  • A privatização do dinheiro;
  • O desmantelamento de megagovernos centrais por meio da descentralização regional e do nacionalismo liberal;
  • A necessidade de defender o ideal liberal com base em considerações predominantemente éticas, em vez da mera eficiência.

Sendo assim, o liberalismo promete ser a doutrina mais frutífera e humanista. Se a Espanha for capaz de abraçar esse humanismo liberal e colocá-lo em prática de forma coerente, certamente experimentará um notável ressurgimento no futuro. Como uma sociedade dinâmica e aberta, poderá ser descrito como a “Nova Era de Ouro Espanhola”.

Bibliografia básica em espanhol

  • Lucas Beltrán, Ensayos de economía política (1996);
  • Luis Díez del Corral, El liberalismo doctrinario (1984);
  • Friedrich A. Hayek, Los fundamentos de la libertad (1998) y La fatal arrogancia: los errores del socialismo (1997);
  • Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo y función empresarial (1992), Estudios de economía política (1994) y Dinero, crédito bancario y ciclos económicos (1998);
  • Israel M. Kirzner, Creatividad, capitalismo y justicia distributiva (1995);
  • Bruno Leoni, La libertad y la ley (1995);
  • Ludwig von Mises, La acción humana (1995) y Sobre liberalismo y capitalismo (1995);
  • Karl R. Popper, La sociedad abierta y sus enemigos (1967);
  • Robert Nozick, Anarquía, estado y utopía (1988);
  • Wilhelm Röpke, Más allá de la oferta y la demanda (1996);
  • Murray N. Rothbard, La ética de la libertad (1995);
  • Rafael Termes, Libro blanco sobre el papel del estado en la economía española (1996);
  • Milton y Rose Friedman, Libertad de elegir (1980).

Tradução de Roberto Lacerda Barricelli do artigo “Liberalismo”, do professor Jesus Huerta de Soto, publicado originalmente no volume 12 da Grande Enciclopédia da Espanha, páginas 5.759 a 5.761. O tradutor introduziu os subtítulos, que não constam na publicação original, para adaptar o formato à realidade das publicações brasileiras.



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