Como uma controvérsia envolvendo Machado de Assis nos coloca em contato com uma grande preocupação de seu tempo…
Em sua obra “18º Brumário de Napoleão Bonaparte”, o ideólogo Karl Marx sentencia que
A História se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Nenhuma frase poderia explicar melhor a insistência revolucionária em cometer sempre os mesmos erros, esperando resultados diferentes, ao melhor espírito de “agora vai”. Vai para onde, meu filho? O Inferno Vermelho?
Talvez, possamos usar essa frase no seguinte sentido: quando não aprendemos com os erros, a história se repete como tragédia, quando aprendemos, mas insistimos neles, sabendo quais serão os resultados, mas prometendo algo diferente, se repete como farsa.
A primeira atitude é a do revolucionário idealista, já a segunda, é a do revolucionário estrategista. Contudo, há uma característica comum a ambos, o ódio à realidade. Enquanto o primeiro a nega, o segundo deseja transformá-la para que se molde às suas ambições – como o alfaiate que ao perceber uma calça muito curta, sugere que se corte um pedaço de cada perna do cliente.
A isso, podemos opor a realidade. E a Literatura se mostra uma ferramenta indispensável.
O Realismo Francês
O Movimento Realista têm seus exageros e ausências, ou seja, seus vícios – como tudo que foge ao equilíbrio[1] -, que flertam com o idealismo, logo, se afastando da realidade. Todavia, possui também suas virtudes, sendo a principal delas a denúncia justamente dos sintomas e expressões dos mais perigosos vícios e de seus prováveis resultados.
Surge com força e estruturado na França pós-revolucionária, nos idos da década de 1850, e estender-se-á aos primórdios do século XX. Entretanto, chama-me a atenção a preocupação d’alguns autores com a formação do imaginário feminino.
As emoções, o sentimentalismo tóxico, o idealismo exacerbado, enfim, a romantização do Eu e do Outro, são preocupações recorrentes na literatura desde tempos antigos. Aristófanes diagnosticou e satirizou essas deturpações no campo sexual, em Lisístrata. Nessa obra, podemos encontrar um germe – ou um verme? – da máxima do Movimento Hippie -, de 2.300 anos depois, “Faça Amor, Não Faça Guerra”.

Os ataques aos excessos do Amor Cortês[2] e da degradação dos costumes, por Miguel de Cervantes, faz de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, a obra fundadora dos preceitos do futuro Realismo; um ‘pré-realismo’.
Foi na França que surgiu o primeiro romance desse subgênero, quando Chrétien de Troyes publicou Lancelotte (1177 d. C.). Justo que seja na França que se levante um movimento contrário aos excessos dos herdeiros do “Amor Cortês”.
A Mulher: Vilã e Vítima
Sempre há escolhas. Dito isto, não podemos ignorar a responsabilidade das mulheres que escolhem aderir ao romantismo, ao idealismo pós-moderno. É mais fácil acreditar no mito do ‘Homem de Verdade’ e da ‘Libertação’, ou aceitar as imperfeições do outro e as consequências das nossas próprias escolhas?
É mais fácil assumir os erros e abandonar as ilusões, ou declarar que “o Inferno são os outros”? O dilema da mulher moderna: ser responsável e almejar o equilíbrio, ou exigir ser liberta das consequências e chafurdar nas “fortes emoções”? Um homem estável, constante e amoroso, ou bandido, cafajeste e violento? Senso de proporções ou a busca pelo inalcançável?
São escolhas! Portanto, se são vítimas de uma mentalidade revolucionária introduzida no imaginário feminino pela produção literária de ideólogos, alicerçados em seus movimentos, também há mui boa literatura que expressa valores, filosofia e princípios basilares da Civilização, além, principalmente, do Cristianismo e suas tradições. Cabe ao indivíduo escolher, exceto quando não há possibilidade alguma de acesso.
Bem, é chegada a hora de ilustrar!
Victor Hénaux ou Machado de Assis?
Por muito tempo houve a controvérsia sobre a autoria da obra “Queda que as mulheres têm para os tolos”, uma crítica ácida, irônica e mordaz. Tal confusão começa com Machado de Assis, cujo nome estampou a publicação no Brasil.
Não sabíamos se era autoria do Bruxo do Cosme Velho, inspirada na obra homônima L’amour des femmes pour les sots, do belga Victor Hénaux, ou a tradução desse trabalho. Recentemente chegou-se ao ‘meio-termo’.
A obra foi traduzida e adaptada por Machado, ou seja, é de Hénaux, com edições machadianas, o que faz do belga o autor primário e do brasileiro o autor secundário. Uma solução para desagradar a francos e brasilianos.
Queda que as Mulheres têm para os Tolos
Ignorando a autoria, é fato que há muito de ambos na versão brasileira. E que maravilhosa crítica! Com algo de Elogio à Loucura, de Erasmo de Rotterdam, a obra ironiza os tolos e a atração feminina por eles.
Mulher alguma resistiu nunca a um tolo.[3]
E mais!
[…] nos tolos tudo é superficial e exterior, não é o amor um acontecimento que lhes mude a vida. Continua como antes a dissipá-la nos jogos, nos salões e nos passeios.[4]
Talvez seja a passagem mais reveladora da obra, que também critica a postura do “homem de espírito”, ao elevar a mulher ao mesmo nível. Para ele, a mulher é capaz das mesmas virtudes.
As mulheres são para ele entes da mais elevada natureza que a sua, ou pelo menos ele empresta-lhes as próprias idéias, supõe-lhes um coração como o seu, imagina-as capazes, como ele, de generosidade, nobreza e grandeza.[5]
O tolo está em vantagem, pois age como o maior dos apaixonados, mas segue a vida após a conquista, ou perder o interesse. Outros, por trazerem emoções, se mostrarem desafios ou oferecerem perigo. No fim, o tolo cultua a si mesmo e vê no amor um entretenimento. Portanto…
[…] os últimos favores, longe de o engrandecerem mais, desligam-no pela saciedade.[6]
Ou seja, se aborrece e parte ao próximo objeto de entretenimento, deixando para trás a mulher amargurada, traumatizada, insegura, confusa e desesperada por novos tolos.
Se Hénaux e Machado trazem teorias e a sátira, é de Flaubert a principal ilustração.
Madame Bovary
Assim como Dom Quixote enlouqueceu com os romances de cavalaria, o romantismo que gerou Werther, também desgraçou o imaginário de Emma. Uma jovem de imensa beleza e grandes aspirações, que desejava casar e morar na capital, Paris.
Contudo, se casa com o médico interiorano Carlos Bovary; um homem comum, com condições econômicas razoáveis, mas sem o espírito aventureiro e grandes objetivos. A moça se vê ‘presa’ ao homem comum e real, muito longe de suas idealizações românticas.
Deseja desesperadamente um tolo, mas só conseguiu um comum, quer o excepcional, mas só obtém o medíocre. A crítica feminista sente as dores de Emma e chama ao comum Carlos de fracassado. Mas o homem fiel, trabalhador, capaz de proporcionar bom conforto e estabilidade é fracassado?

Gustave Flaubert foi duramente criticado e até processado, como se atentasse contra os costumes e boa moral de sua época. As carapuças serviram e sua denúncia incomodou a alta sociedade burguesa da França, com sua fraqueza moral e afetações revolucionárias.
Mas a práxis de Emma Bovary pode ser verificada no dia a dia de qualquer mulher moderna; qualquer uma cujas escolhas se baseiam em estereótipos ideológicos. E são dois tolos a cruzarem o caminho de Madame Bovary.
Primeiro, um nobre decadente, mas ainda galante, mui culto e com certas posses, depois, um jovem idealista, apaixonado, impulsivo… Ambos sucumbem aos aborrecimentos da saciedade, deixando uma destroçada Emma buscando um culpado para as consequências de suas escolhas… O infeliz Charles, que a amou sinceramente e deu-lhe o que melhor de si poderia. Nem mesmo a filha serviria como divisor de águas para a redenção da Madame Bovary.
Sua relação com a filha mais parece de uma menininha mimada com suas bonecas. Teve Emma Bovary algum dano emocional e psicológico advindo da gravidez? Como é comum aparecer na literatura aquilo que encontramos na realidade, principalmente quando não há um diagnóstico, não é hipótese totalmente descartada.
Todavia, não há esse tipo de referência médica na obra de Flaubert. O próprio autor afirma ter baseado sua personagem em si. Numa afirmação de fundo psicológico, emocional, espiritual… Que hoje seria absurdamente tratada como algum tipo de indício homossexual.
Madame Bovary sou eu.
Gustave Flaubert
Biografado pelo Oposto
A vida de Flaubert pode fazer justiça a sua afirmação. Entretanto, nenhuma prova mais forte de suas intenções literárias do que o “pai” do existencialismo ateísta francês, Jean-Paul Sartre, e marido da principal ideóloga feminista, Simone de Beauvoir, dedicar uma obra para lhe atacar.[7]

Nessa biografia, Sartre usa de diversas fontes, inclusive cartas, testemunhos, obras da juventude etc. O método de pesquisa não é desprezível, na verdade, a abundância de fontes e a sua organização são fascinantes. Entretanto, a análise decepciona, determinantemente afetada pela paixão ideológica de Sartre; que admitia ser Flaubert o seu oposto.
Não me larga a impressão de que Sartre exagerou nas acusações sobre a visão pessimista de Flaubert acerca da realidade, ao ponto de o acusar indiretamente de irrealista. A construção da personalidade do biografado a partir de uma infância difícil, com uma mãe neurótica e um pai ‘autoritário’ – para crianças a figura de autoridade geralmente parece autoritária, e para revolucionários, mas só quando não é o ditador da mesma ideologia e grupo.
Por fim, Sartre pinta uma imagem d’um Flaubert quase niilista, neurótico, hipócrita e até débil, mentalmente insano. E dedicou 15 anos de sua vida ao trabalho de tentar demolir seu oposto. Fascinante!
De volta ao tema
Perdoe-me o leitor pelas divagações. Voltando ao tema, a preocupação com a depravação no imaginário feminino chegou ao território brasileiro. De José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, a Joaquim Manoel de Macedo e Julia Lopes de Almeida, há clara preocupação com a educação das meninas.

Não que fosse uma preocupação inexistente n’outros locais e épocas, mas se trata de uma produção literária muito específica para a formação moral das meninas. A formação religiosa e a familiar são de outro tipo; a primeira se preocupa com a salvação da alma, a segunda, com o caráter. A alta literatura afeta a formação do imaginário moral e todo o esforço nesse sentido não é por acaso, tampouco coincidência.
Cairu dedicou três extensos volumes à educação da juventude conforme as sagradas escrituras, enquanto outros lutaram no campo literário. Machado trouxe Henaux ao país de Bernardo Guimarães, Narcisa Amália e Júlio Ribeiro.
Também é inegável a influência do patrício Eça de Queiroz nos realistas brasileiros. Mas os franceses são claramente uma grande influência na obra machadiana. Não é diferente na crítica realista aos vícios no comportamento feminino.
Finalizando pelo Início
Como o leitor perceberá, comecei pelo fim, posto que seja a controvérsia envolvendo Machado de Assis o mote para este texto. Agora, finalizarei pelo início.
Também francês, Honoré de Balzac publicou A Mulher de Trinta Anos quase 15 anos antes de Flaubert publicar Madame Bovary. Dividido em seis partes, primeiro publicadas entre 1829 e 1841, depois, reunidas numa edição definitiva, em 1842.
A personagem principal, Júlia, expressa problemas similares aos que acometeram Emma. Rebelde, idealista e emocionalmente imatura, casa com o primo, Vitor, contra os conselhos e a vontade de seus pais. O primo é coronel de Napoleão, suscitando na jovem aqueles devaneios da paixão; talvez a farda indicasse força, coragem e aventuras…

Inevitavelmente a desilusão enlaça Júlia, que logo se apaixona perdidamente por um Lorde inglês, Artur de Grenville. Esta será a nova grande paixão de sua juventude. Todavia, nasce sua filha com Vítor e alguns escrúpulos a fazem se afastar do Lorde. O desfecho, algum tempo depois, a entristece. Júlia se recolhe ao interior com a filha, mas sem o marido, e nada parece saciá-la.
Até que aos trinta anos, no ápice da formosura, conhece Carlos de Vandenesse. Um jovem que se apaixona perdidamente por ela, que não resiste ao tolo. A relação com o amante terá o desenlace mais trágico da obra.
Nas duas últimas partes acompanhamos Julia e Vítor, da maturidade à velhice, e suas relações familiares. De mais importante estão um ciclo que se repete, o destino de Vítor e os arrependimentos que consomem Júlia.
Esse romance marcou de tal forma a literatura, que os minimamente entendidos chamam às mulheres de trinta anos de balzachianas, ou balzaquianas. Seja pelo “ápice poético” ou as similaridades com Júlia. Inclusive, é de se questionar se Balzac buscou inspiração na história da filha única do imperador Augusto, que se entregou aos piores vícios e promiscuidades, levando à cama inúmero homens romanos e envergonhando ao pai e à pátria.

A Júlia de Balzac é muito mais contida, mas a de Augusto simboliza todos os vícios consequentes da depravação do imaginário feminino. E quantas Emmas cabem numa Júlia? Aliás, quantas Júlias passam por uma vida dedicada aos prazeres, desiludidas porque o marido não é capaz de atender ao seu idealismo – o Homem de Verdade? -, e renegam a família, principalmente os filhos, só para já velhas sentirem as dores dos arrependimentos?
Algumas, morrerão sem se arrependerem, na certeza de que a culpa é do outro; por estas, rezemos!
O realismo, enfim, mesmo imperfeito, com alguns excessos, pode ainda servir de alerta. Cuidemos do imaginário de nossos filhos, especialmente das mais vulneráveis às desgraças ideológicas, as meninas.
[1] ver AQUINO, Santo Tomás de; Sobre os prazeres: Comentários ao Décimo Livro da Ética de Aristóteles, Ecclesiae, 2013. O Doutor Angélico demonstra como as Virtudes estão no equilíbrio, através da interpretação do Livro Décimo da Ética, de Aristóteles. Portanto, tudo o que for excesso, seja pelo exagero ou pela ausência, foge ao equilíbrio e leva aos vícios, todavia, o que se faz na justa medida, tende a ser virtuoso. Por exemplo , a Liberalidade é uma Virtude, já sei exagero, Prodigalidade, assim como sua ausência, a Avareza, são vícios.
[2] Movimento pré-romântico surgido aos fins do Século XI, que exagerava as boas qualidades femininas e reduzia o homem ao papel de cortesão. No entanto, alcançavam o papel humilhante de submissos à paixão pela mulher. Suas dores, sofrimentos, preocupações, objetivos etc., voltavam-se à servidão; deveriam dedicar-se a servir à mulher-objeto da paixão. Os resultados desse ideal cavalheiresco, presente principalmente nos romances de cavalaria, são expostos e denunciados na obra máxima de Cervantes. Ao contrário do que encontramos em verbetes de alguns autores como Francis Newman, não há disciplina ou transcendência, só exaltação da mulher. Há também a crítica que situa o Amor Cortês como um vício pelo exagero da Humildade e da Cortesia, assim como incentivador de Adultérios e responsável por avanços revolucionários como a ‘Religião do Amor”; um paganismo moderno. Ver LEWIS, C..S.; Alegoria do Amor, É-Realizações, 1ª edição, 2012, São Paulo, SP. Devemos ignorar os que tentam criar ilações entre o “Amor Cortês” e o Marianismo (Católico), pois a atração sexual está na base desse subgênero literário, mesmo o ato sexual não sendo a motivação dos heróis ou consequência da práxis – das ações dos personagens. Antes, a satisfação do desejo sexual pelo objeto da paixão leva ao desinteresse e até à melancolia e arrependimento do cortesão – um problema muito comum ao nosso século, onde as relações sexuais se tornaram banais e a satisfação de um desejo ou prazer conduz à necessidade de atender a outros desejos ou prazeres mais ‘emocionantes’, como forma de preencher o vazio resultante da conquista e realização dessas banalidades.
[3] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria; HÉNAUX, George-Victor; Queda que as Mulheres têm para os Tolos, Instituto Visconde de Cairu, 1ª edição, São Caetano, SP, 2024, Edição, Apresentação e Notas por Roberto Lacerda Barricelli, prefácio de Ane Martin, Capítulo II, Página 23.
[4] Op. Cit., Capítulo III, Pg. 27.
[5] Op. Cit., Capítulo III, Pg. 25.
[6] Op. Cit., Capítulo V, Pg. 33.
[7] SARTRE, Jean-Paul; Flaubert, O Idiota da Família, L&PM, 2013, 1ª edição, Vol. 1; ibidem, 2014, 1ª edição, Vol. 2; ibid., 2015, 1ª edição, Vol. 3.
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