A Rússia sob a perspectiva de quem conhecer os dramas da Casa dos Mortos e vive e move-se pela esperança de liberdade
Em tempos sombrios no Leste Europeu, no qual uma guerra fratricida nos remonta ao Édipo em Colono, um fio de esperança ainda ilumina a pátria da Casa dos Mortos. Mas apenas se tivermos um pingo da perspicácia do grande Mestre, que por curto período a conheceu. Da ascensão meteórica muito cedo, da arrogância na juventude, da obra única, mas não prima, que estabeleceu-lhe num patamar desfigurando-lhe a alma. De tudo aquilo que o empurrou às catacumbas da Sibéria e às mesas de apostas, nosso biografado sabia da importância da esperança de liberdade, para a sobrevivência dos homens.
Tal liberdade perece pouco a pouco naquela grande Mãe de povos. Inclusive, sob os olhares incrédulos d’uma Velha (carcomida) Europa e a senilidade bem quista do “imperialismo Yankee”. Então, como manter a menor esperança?
Um jovem genioso

Nascido a 11 de novembro de 1821, na capital do Império do Czar, recebe o nome de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski. Tragicamente, perdeu a mãe aos 15 anos e o pai aos 18. Talvez por ver-se muito cedo sozinho neste vale de lágrimas, convivendo com tragédias familiares já na adolescência, tenha em si a semente da análise psicológica, que cedo germinou. Mas cujos frutos ainda saboreamos.
O sucesso de seu primeiro romance, “Gente Pobre”, só não superou o fracasso do segundo, “O Duplo“. Viu seu protetor – até ali quase um pai – Vissarion Belinski – tornar-se seu principal crítico. Todavia, talvez pela suposta postura arrogante desde o estrondoso sucesso, ou pela frustração de ver seu protegido afundar qual navegante intempestivo, que ignora os experientes marujos. Ou para tentar controlar a turba que se insurgiu. De fato, Belinski toma a frente das críticas.
Dostoiévski contra ataca através dos parcos jornais daquele século, sempre sob supervisão da censura do Czar. Contudo, o tempo deu razão ao autor sobre sua obra, apesar de continuar fora do rol de suas grandes criações. Porém, os ataques só aumentaram e não pouparam quaisquer das obras subsequentes, até 1949. Nem sequer Noites Brancas, que já “dedurava” a profundidade da veia psicológica do moscovita.
Jovem, o ego ferido, começa a participar das mesmas reuniões de círculos “proibidos” que Belinski. Por exemplo, de Petrashevski e Palm-Durov, e a declamar alguns textos. Como quem diz “provarei ser melhor do que ti”, faz de cada discurso o mais inflamado. Assim sendo, acaba preso e enviado à Sibéria, escapando por pouco da pena de morte, pois pesava contra si a acusação de tramar contra o Czar.
A quase execução
Junto d’outros 14 acusados, todos julgados por um Tribunal Cívico-Militar, condenam-o à morte. Contudo, comutaram a pena em trabalhos forçados e serviço militar obrigatório.

O Czar ordenou a encenação d’uma execução. Três dos condenados chegaram a ser amarrados a postes, frente ao pelotão de fuzilamento… e salvos no último momento pela carta do Imperador. Dostoiévski estaria no próximo grupo de três e tentou consolar aos demais, dizendo: “Nós estaremos com Cristo”. A experiência de quase morte alterou o curso da personalidade de Dostoiévski, e será tão determinante nas criações futuras, quanto seu tempo na Sibéria.
Exílio e Prisão
Ficou oito meses exilado na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, até o julgamento. Assim como mais quatro anos sob trabalhos forçados na prisão de Omsk que, segundo Dostoiévski, em carta enviada ao irmão, deveria ser demolida.

Outros relatos mostram a forte impressão causada pelo conflito de grupos na prisão. Quem antes fora servo, não aceitava mais sequer o contato com prisioneiros de grupos mais abastados. Mas também zombavam dos intelectuais por que demonstravam inferioridade nos trabalhos braçais. Ademais, até quando Dostoiévski tentou participar d’uma manifestação por causa da insuficiência na alimentação, expulsaram-no, por conseguir comprar porções suplementares.
As relações sociais na prisão marcaram o literato e a obra inspirada nos quatro anos de cárcere inaugura a maturidade do autor.
A Casa dos Mortos

Em “Recordações da Casa dos Mortos“, Dostoiévski alcança a maturidade e aprofunda suas impressões sobre a psique e seus reflexos nas expectativas dos indivíduos e suas relações com o ‘Outro’. Quando fala-se em Dostoiévski, geralmente encontramos quem o conheça por “Crime e Castigo“, apesar de considerar-se “Os Irmãos Karamazov” sua Obra Magna.
Raskolnikov é um personagem marcante, envolvente e (principalmente) que gera identificação com muitos de nossa juventude universal – para o Mal ou para o Bem. Conquanto os conflitos do personagem transitam entre o superficial e o complexo. Desde a ideia niilista do Super Homem, à desilusão que (décadas depois) encontraremos em “Humano, Demasiado Humano“, de Nietzsche.
Porém, na Casa dos Mortos que o gigante russo aparentemente repousou sua alma. Na brutalidade d’um local onde há mobilidade interna e visitas das esposas. Mas só sensações sutis e esporádicas de liberdade, rapidamente esmagadas pelos grilhões no caminho do nobre Aleksander Petrovitch Goriantchikov à pedreira. Aliás, na qual será alvo de chacota por suas dificuldades nos trabalhos físicos e maneiras mais educadas.
A Nobreza atrás das Grades
Aleksander Petrovitch Goriantchikov perdeu seu status e boa parte das riquezas que seu título outorgava-lhe. Entretanto, não deixou de ser um Nobre, nem na aparência, nem na essência, tampouco aos olhos dos demais presos. Por dez anos sentirá o desprezo e a rejeição dos detentos, à exceção d’um pobre infeliz, viciado em malandragens, que colocar-se-á praticamente em posição servil. Assim como um ou outro personagem menor, que prestou-lhe algum serviço.
Mas também em Aleksander Petrovitch Goriantchikov que o autor expôs suas frustrações daquele período na Sibéria. Afinal, é possível que Dostoiévski jamais recebesse a menor aprovação dos demais detentos, enquanto A. Goriantchikov consegue o respeito daqueles que importavam. Mesmo passando mais tempo debilitado na enfermaria, do que no próprio presídio.
Insensibilidade e ausência de Razão
Grande observador e perspicaz analista do espírito, Goriantchikov retrata a Casa dos Mortos quase como uma das camadas do Inferno na “Divina Comédia“, de Dante. Talvez a mais profunda delas, ou variações de algumas camadas.
O amor e a caridade mostram-se luxos, que os detentos (quando) mantêm (é) apenas em sonhos, devaneios etc. Na enfermaria, jazem os moribundos, abandonados à própria sorte e até utilizados pelos médicos em aulas práticas para os universitários. Por conseguinte, talvez daí George Orwell retirou a inspiração para relatar a própria experiência numa enfermaria europeia de começos do século XX? Quem sabe…
E as punições? O medo da punição era maior do que a capacidade de aguentar as chicotadas. Mas tanto, queos prisioneiros cometiam novos crimes e atos contrários à administração, buscando adiar a aplicação do ‘corretivo’. À revelia do fato de que essas novas transgressões aumentariam o número de chicotadas.
Muitas vezes tanto as punições quanto os trabalhos forçados não obedeciam a qualquer exigência racional Pois não havia razão naquele lugar, nem mesmo nos funcionários. Alguns só reclamavam, mas outros adaptavam-se e construíam uma pequena fortuna nos três anos por contrato obrigatórios. A brutalidade imperava, a animalidade traria horror aos intelectos mais sensíveis.
Até para Goriantchikov, que assassinou a esposa devido aos ciúmes d’uma suposta traição, doía a discriminação sofrida como aristocrata e ter ainda algumas posses – suficientes para passar aqueles 10 anos sem sujeitar-se aos trambiques para sustentar 1% de conforto. Assim como a introspecção dos demais (apesar dele próprio ser assim descrito por Dostoiévski, que começa o livro como se trata-se d’um colega da época de prisão) e toda sorte de mesquinharias, causavam certa revolta.
Todos na Casa dos Mortos pareciam em guerra com a Vida, talvez com o próprio Deus.
A Esperança e a Liberdade na Casa dos Mortos

À exceção de antigos aristocratas, cada preso buscava por artimanhas. Desde o contrabando de bebidas e quinquilharias, ao de fumo e organização de jogos de azar (seria aí que Dostoiévski tornou-se viciado em jogo?). Tudo para sentir o tilintar d’algumas moedinhas nos bolsos, trazendo-lhes alguma sensação de liberdade.
A esperança de liberdade mantinha vivos mesmo aqueles condenados que provavelmente morreriam em idade avançada entre os muros do presídio. Logo, uns planejavam fugas e como seria a vida longe da Casa dos Mortos. No entanto, não saíam do mundo das idéias. Já outros, sequer pensavam, abraçando quaisquer oportunidades de fugir.
A maioria não fugia, nem da prisão, nem do trabalho pesado e da caça às moedas. Porém, no intuito de juntar cada centavo para gastar com prostitutas, jogo e bebida, durante festas clandestinas (sob as vistas grossas das autoridades internas). E como festejavam, curtindo até a ressaca posterior, lembrança de momentos nos quais conseguiam obter os prazeres dos homens livres. Mas para começar tudo de novo, focando na próxima festividade.
Dostoévski precedeu Viktor Frankl?
Abro um espaço curto para citar o Dr. Viktor Frankl e recomendar sua obra “Em Busca de Sentido“. Pois Frankl sobreviveu aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, ainda ajudando outros prisioneiros. Não ‘satisfeito’ usou das experiências daquele período de terror e de sofrimentos indescritíveis, no desenvolvimento de suas teorias. Para Frankl, o ser humano precisa dar “sentido” à vida, buscando isso ao longo de toda estadia na Terra.
Todavia, não tirou essa teoria de devaneios, mas principalmente pela observação d’outros sobreviventes como ele, que só não pereceram devido aos objetivos que mantinha. Por exemplo, rever a família, escrever um livro, casar, construir uma família, ir à Missa etc. Pessoas com algo que dava “sentido” às suas vidas, motivação para sua vontade de lutar e sobreviver. Enquanto aqueles sem sentido, rapidamente caíam vítimas de doenças, exaustão ou descarte pelos nazistas.
Dostoievski observou o mesmo fenômeno na Casa dos Mortos, retratando-o em sua obra “Recordações da Casa dos Mortos”. Mas não desenvolveu uma teoria como Frankl, ou ao menos não tornou-a pública diretamente, mas através de suas obras.
A Maturidade de um Gênio

Do lado de fora o Mestre teve seus problemas com jogo e novas tragédias familiares, como a morte da primeira esposa e do irmão. Por isso, precisou sustentar a cunhada viúva, os quatro sobrinhos e os dois enteados (sendo um deles alcoólatra). Mas as experiências dentro da Casa dos Mortos claramente nortearam o autor no desenvolvimento de obras primas como “Crime e Castigo“, “O Idiota“, “Memórias do Subsolo“, “Noites Brancas“, “O Jogador“, “Os Demônios“, “O Eterno Marido” e a magna “Os Irmãos Karamazov“.
Ainda casou-se pela segunda vez e perdeu sua primeira filha para uma gripe, em 1868, no auge de seu endividamento por jogo. Não fosse sua segunda esposa, Anna Dostoievskaia, e sua sincera e comovente conversão à religião dos servos e do povo russo (há diferença?), o cristianismo ortodoxo, é incerto se teria recuperado o suficiente para tornar-se um Universal.
Numa dessas ironias que Deus reserva aos maiores, condenado em 1849 pelo Czar Nicolau I a morte, pena comutada em trabalhos forçados na Sibéria. Mas convidado pelo Czar Alexandre II a ser tutor de seus filhos, Sergei e Paulo. Cargo que aceitou, em 1878, mesmo ano da morte de seu filho Aleksey (Aliosha).
Morte do Universal

Em 9 de fevereiro de 1881, Dostoiévski teve deterioração de sua saúde e expirou por causa de uma hemorragia pulmonar com associação a um enfisema. Ademais, desde a época na Sibéria, o autor convivia com crises de epilepsia. Inclusive, há quem diga que ao final de sua vida, ocorriam com certa frequência.
Todavia, perder Aliosha e os ataques por causa do discurso no Monumento a Pushkin, sendo acusado até de professar idéias semelhantes ao socialismo utópico francês, talvez aceleraram sua partida.
Casa dos Mortos: Uma obra Profética
Entre a escória russa, de assassinos, fraudadores, ladrões, malandros de todo tipo, havia a valorização da liberdade, mas que só aprenderam após perderem-na. Quais povos deste século apreenderam tal valorização, antes de preceberem que perderam a liberdade? Entre aqueles que perderam, passando pelas piores irracionalidades, as insensibilidades, animalidades etc., quais não lutam até o fim para preservá-la?
Alguns precisaram passar por experiência similar a de Dostoiévski, para também enxergarem a liberdade por outro prisma. Portanto, uma antecipação do grande psicólogo da literatura universal.