O objetivo do texto é demonstrar como o pessimismo de Tolkien, sob uma certa interpretação, o salva da acusação de gnosticismo
Antes, porém, destaca-se que o autor não é perito em Tolkien, não o pretende ser ou afirmar sê-lo, mas quer contribuir para a discussão a partir de seus estudos de composição narrativa.
Também, a afirmação de que Tolkien não seja um gnóstico não significa dizer que ele não sofreu influências gnósticas. Para esclarecer esse ponto, basta destacar que todo brasileiro, estatisticamente falando, terá alguma situação em que será um verdadeiro analfabeto funcional dada a quantidade de analfabetos no país.
A cultura, de certa forma, impõe-se ao sujeito
Também é importante destacar que toda obra literária deve ser acompanhada de uma crítica literária que explicite o seu conteúdo. Afinal, a função do autor é “esconder” elementos narrativos que o leitor deve perceber como forma de educar-se. A função da crítica literária é evidenciar aquilo que está oculto, sendo alguns dos elementos ocultos coisas que eram óbvias ao autor e deixam de ser para outros públicos.
Esse “ocultar” e explicitar é como o ensino de uma conta matemática em que o resultado de uma equação está, ao mesmo tempo, oculto e explicitado. Porém, é razoável admitir-se que “ocultar” não é exatamente um bom termo, pois o que está “oculto” para alguns, na verdade, é um “implícito” do contexto do autor.
O pessimismo
O pessimismo de Tolkien manifesta-se fundamentalmente na saída de Frodo e dos elfos da Terra Média, que fica sob responsabilidade dos homens. Aqueles mesmos que cederam à tentação e não destruíram o Um Anel.

Tal pessimismo, na prática, sugere que houve um triunfo do mal: Frodo não pode permanecer na sua casa e o Bolsão é herdado por Sam. Houvesse o bem totalmente triunfado, haveria uma recuperação de Frodo. Logo, a ausência dessa regeneração sinaliza algum pessimismo. Ou seja, que há uma constante de decadência no mundo.
Esse é um primeiro elemento para a interpretação.
Passado antigo
Tolkien e Lewis, em muitos aspectos, fundam a fantasia contemporânea. Lewis sob um aspecto negativo, funda-na retirando qualquer ligação entre os seres mitológicos e seus significados tradicionais. Tolkien criando o modelo inspiracional para praticamente qualquer outra obra fantástica (vide sistemas de D&D).

Não se quer afirmar, com isso, que Tolkien e Lewis sejam as únicas inspirações da fantasia moderna. Contudo, é inegável que possuem uma influência de destaque.
Para o presente texto, observa-se que Tolkien descreve um passado antigo sob a perspectiva de Sam (no caso de Senhor dos Anéis), que não é necessariamente um narrador confiável. Exatamente como não se pode confiar que todas as mitologias descrevem fenômenos sobrenaturais que realmente aconteceram, mas que guardem alguma proporção.
O fato de Sam escrever os tomos também justifica a estrutura narrativa quando da dissolução da Sociedade do Anel. Sam escreveu o que Aragorn e os demais fizeram para resgatar Merry e Pippin a partir dos relatos colhidos.
A Tradição Única
A ideia de uma tradição única não é só coisa de gnósticos e perenialistas, mas uma certa consequência da aceitação da historicidade do Gênesis. O problema é compreender que a narrativa do primeiro livro bíblico não se manteve íntegra em todas as culturas e foi se degenerando e deteriorando.
Se nalguns casos ela permaneceria próxima da realidade ou, ao menos, moralmente aceitável, noutras ela teria se transformado numa verdadeira “doutrina do demônio”. Trata-se de uma consequência natural da separação em duas descendências: de Set e de Caim.
Por hora, não há que se discutir onde cada mitologia deve ser enquadrada e quanto aos problemas que aparecem com as várias que se encaixam em algum termo médio.
É suficiente aceitar que todas as mitologias se inspiram numa narrativa primordial que é verdadeira. Ela é primordial por ser “primeira” e “real”. E não se trata de um “real arquetípico”, mas real no sentido de realmente ter acontecido.
Ou seja, pode-se questionar se o dilúvio afetou todo o planeta ou bastou uma parte para só sobreviver a família de Noé. Mas a historicidade do dilúvio precisa ser compreendida como um fato para que se entenda essa interpretação.
Inclusive, não se pode entender o marco que é Charles Darwin sem perceber que tal hipótese era amplamente aceita até suas publicações (e de outros autores).
A interpretação
Deste modo, o que Tolkien faz é fazer de sua obra como resquícios de uma tradição oral que advém do Gênesis. Não necessariamente a validando.
Assim, ele fala de uma situação de queda da qual não há salvação pela própria virtude. Ou seja, é preciso que venha o Salvador. Porém, sem os profetas, não havia como os homens conhecerem isso e o resultado é um pessimismo: Frodo precisa sair da Terra Média e o mal tenderá a crescer até que venham Novos Céus e uma Nova Terra.
Porém, sem os profetas, não há como os povos saberem disso, ainda que possam viver o melhor que consigam.
Cristianismo corrigindo a Mitologia
Sam, como já comentado, extrapola alguns elementos narrativos porque quer trazer algo moralizante que está presente nos mitos que sua tradição oral mantém. Pode-se dizer que ele simplesmente quer contar uma história mais interessante para seus filhos.
Por esta interpretação, o Cristianismo aparece com uma mensagem que, ao mesmo tempo, corrige os erros mitológicos da obra e apresenta uma esperança de que o mal, ao fim, não terá o triunfo derradeiro. Similar ao processo de assimilação da filosofia platônica e aristotélica pelo Cristianismo.
Resuma-se porém o fato de o pessimismo de Tolkien o escusar de ser gnóstico. Isso não é suficiente para negar totalmente que haja influências gnósticas em Senhor dos Anéis ou para afirmar que seja uma obra apologética.

Inclusive, há autores que colocam Platão e Aristóteles como tendo influências que, hoje, seriam classificadas como gnósticas e esotéricas.
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