A prisão do ex-assessor transcende a obra de Kafka, e se alinha à história dos abusos políticos-ideológicos no Brasil
O ex-assessor internacional Filipe Martins ficou seis meses preso por uma acusação sem provas. Baseado num arquivo sem verificação de autenticidade num computador de Mauro Cid.
Filipe foi preso no Brasil, acusado de ter fugido aos Estados Unidos da América. Repetindo: foi preso em solo nacional, sob a acusação de estar ‘foragido’ em solo estrangeiro. Sequer foi explicada a suposta motivação para a ainda mais suposta fuga.
O Processo
Quando li sobre o Caso Filipe Martins, me foi impossível não pensar em Franz Kafka. Especificamente, na obra O Processo. Pois os abusos da distopia de Kafka são comparáveis ao caso do ex-assessor.

Josef K. é coagido ao Tribunal, num processo totalmente absurdo. Não há acusação formal, nem motivação, tampouco acesso do acusado a qualquer evidência, informação, indício etc.
Imagine se defender num processo sem a mínima ideia do que e o porquê está sendo acusado? Portanto, qual a diferença de fato entre a distopia do escritor austríaco e a distopia vivida por Filipe Martins?
Contudo, é bom frisar que estou resumindo a obra kafkaniana. Pois há mais detalhes, nuances etc etc. Pensem num processo montado para que o réu não tenha chance alguma de defesa; preparado para resultar numa condenação e punição. Então…
É nesse aspecto que O Processo e o Caso Filipe Martins se confundem e quase se entrelaçam. Entretanto, transcendeu essa obra de Kafka.
Continuidade Histórica Brasileira
Filipe Martins foi preso sem acusação clara, nem investigação objetiva, tampouco verificações básicas, como às listas de controle de viagens disponíveis nos órgãos estatais oficiais. Num processo obviamente montado para tentar justificar sua prisão.
Tais abusos não são exclusividades do judiciário brasileiro atual. Sendo assim, poderia retroagir aos processos persecutórios do Marquês de Pombal contra os Jesuítas. Todavia, o caso de Filipe Martins tem raízes mais próximas. Por causa de um histórico que remonta ao menos aos primórdios da República.
Engana-se ou mente quem afirma que as disputas políticas no Brasil já foram brandas ou “democráticas”. Os golpes são mais frequentes do que os períodos democráticos. Apesar de quase todos serem golpes militares, até o Padre Diogo Feijó tentou essa sorte.
Enfim, veio o golpe da República. Com ele, a perseguição a tudo que lembrasse a monarquia. Nomes, símbolos, pessoas… Ruas foram re-nomeadas, feriados republicanos foram criados, a bandeira e o hino foram alterados e cidadãos perseguidos, presos e executados.
Anos depois, numa carta em resposta ao Almirante Jaceguay, Barão de Jaceguay, Joaquim Nabuco expõe o que entendia como a postura correta a ser adotada pelos monarquistas na política republicana e o porquê considerava a Monarquia o melhor sistema para o Brasil.
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Estado de Sítio (1892)
O primeiro ditador pós-golpe, Marechal Deodoro da Fonseca, renunciou ao cargo em 1891. Subiu ilegalmente à presidência o Marechal Floriano Peixoto. A Constituição de 1891 proibia que um vice fosse empossado se o mandato fosse interrompido em menos de dois anos.
A oposição tentou fazer respeitar a Constituição pelas vias legislativas e jurídicas. Entretanto, Peixoto usou sua força para intimidar opositores e juízes. Sendo assim, começaram as manifestações nas ruas.
O ditador decretou o Estado de Sítio e a suspensão dos direitos civis por 72 horas, em 12 de abril de 1892. Contra esse abuso levantou-se Rui Barbosa.
A Luta de Rui Barbosa
Rui Barbosa se insurgiu contra os atos executivos do ditador. Peixoto realizou ‘reformas’ na canetada, demitiu funcionários públicos vitalícios e ordenou a prisão de desafetos. Por causa de se oporem à ilegalidade da posse, foram presos sem delito ou flagrante senadores, deputados, jornalistas e oficiais-generais.

Aos demais opositores, reservou a deportação para terras distantes. Mas sempre à revelia da lei, da Constituição. Rui ingressou com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF). Pois não se tratava exclusivamente de fato político, mas de invasão aos direitos individuais dos cidadãos perseguidos.
Eram processos sem delito, prisões imediatas sem flagrante e acusações obscuras, sem fatos, tampouco provas. Claro que é só um devaneio, mas se Kafka tivesse conhecido a história brasileira, poderia se inspirar aí para escrever O Processo. Lembrando que o escritor austríaco faleceu antes da consolidação da Revolução Comunista na Rússia e da ascensão do Nazismo.
Ao argumento da exclusividade política, retrucava
Qual é a disposição constitucional onde se ache essa exceção limitativa à vossa autoridade geral de negar execução às leis inconstitucionais e aos atos inconstitucionais do Poder Executivo?
O Acórdão
O Habeas Corpus 300 foi impetrado por Rui Barbosa em favor dos 46 prisioneiros políticos, e foi julgado pelos 11 juízes do STF. Entretanto, sua peça de 50 páginas escritas a mão não obteve a justiça devida, em favor dos seguintes:
[…] senadores almirante Eduardo Wandenkolk, marechal José de Almeida Barreto, Dr. Pinheiro Guedes, coronel João Soares Neiva, e deputados contra-almirante Dionísio Manhães Barreto, coronel Alfredo Ernesto Jacques Ourique, tenente-coronel Antônio Adolfo da Fontoura Mena Barreto, 1º tenente João da Silva Retumba, Dr. João da Mata Machado, Dr. José Joaquim Seabra, lº tenente Domingos Jesuíno de Albuquerque, e cidadãos marechal José Clarindo de Queirós, marechal Antônio Maria Coelho, coronel Antônio Carlos da Silva Piragibe, tenente-coronel Gregório Taumaturgo de Azevedo, capitão-tenente Duarte Huet Bacelar Pinto Guedes, major Sebastião Bandeira, capitão Antônio Raimundo Miranda de Carvalho, capitão Felisberto Piá de Andrade, lº tenente Bento José Manso Saião, alferes Carlos Jansen Júnior, Dr. Clímaco Barbosa, Dr. Egas Moniz Barreto de Aragão, Conde de Leopoldina, Antônio Joaquim Bandeira Júnior, José Elísio dos Reis, José Joaquim Ferreira Júnior, Inácio Alves Correia Carneiro, José Carlos do Patrocínio, Plácido de Abreu, José Carlos Pardal de Medeiros Mallet, Olavo dos Guimarães Bilac, Dr. Dermeval da Fonseca, Dr. Artur Fernandes Campos da Paz, Manuel Lavrador, José Carlos de Carvalho, Sabino Inácio Nogueira da Gama, Francisco Gomes Machado, Dr. Francisco Antônio de Almeida, Dr. Francisco Portela, capitão-tenente João Nepomuceno Batista, 1º tenente Libânio Lins e capitão José Gonçalves Leite.
Rui creditava ao STF a função de proteger os direitos individuais dispostos na Constituição contra os abusos do poder político. Porém, no acórdão de 23 de abril de 1892, o órgão declinou de seu dever e acovardou-se perante Peixoto. Logo, negou o habeas corpus, argumentando em apenas 8 (oito) linhas – do total de 55 – a competência exclusiva dos poderes Executivo e Legislativo sobre o Estado de Sítio.
Considerando que, pelo art. 80, § 3º, combinado com o art. 34, § 21, da Constituição, ao Congresso compete privativamente aprovar ou reprovar o estado de sítio declarado pelo Presidente da República, bem assim o exame das medidas excepcionais que ele houver tomado, as quais para esse fim lhe serão relatadas com especificação dos motivos em que se fundam
Todavia, ignorou a correta argumentação do brilhante jurista baiano. Pois não se tratava da decretação do Estado de Sítio, ou de atos executivos meramente institucionais e na garantia da lei e da ordem, mas perseguição política clara e manifesta. Portanto, invasão flagrante dos direitos individuais, principalmente pelas prisões arbitrárias sem quaisquer justificativas legais pertinentes.
Mesmo no Estado de Sítio, os poderes da República devem agir em conformidade com a legalidade e justificar seus atos. Prisões sem delito ou flagrante, nem evidências ou indícios que sustentem o caráter preventivo, não são abusos?
A resposta de Rui veio pela imprensa, em 22 artigos atacando a decisão do STF. Contudo, em 8 de junho de 1892, o “Marechal de Ferro” ajustou os presos políticos.
De volta a 2024
Em 1892, o STF acovardou-se perante o ditador militar, negando-se ao cumprimento de sua função primordial de defender os cidadãos contra abusos do poder político. Contudo, hoje é palco de abusos judiciais por motivações políticas e ideológicas.
A perversão de sua própria justificativa de existência constitui alinhamento à continuidade histórica dos abusos políticos-ideológicos no Brasil. Pois, no 08/01 havia acusações absurdas, porém com alguma narrativa (falsa) apontando supostas motivações e objetivos criminosos.
Todavia, no Caso Filipe Martins não há acusação de fato. Oras, é acusação dizer que o ex-assessor ‘fugiu’ aos EUA? Mas fugiu de quê? Para quê? Só ‘fugiu’, sem indicar qualquer objetivo criminoso ou prática de delito? Nada?

Pior, preso no próprio país e mantido em cárcere, mesmo com seu advogado apresentando provas irrefutáveis da sua presença no país também no período que estaria ‘foragido’.
Portanto, esse caso transcende O Processo, de Kafka, ainda que, por enquanto, não tenha o mesmo final. Pois Filipe Martins foi solto só após 6 (seis) meses, com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República. Mas que terá sofrido e o que haverá de enfrentar? Uma liberdade provisória para alguém preso sem quaisquer justificativas acusatórias, é uma extensão dos abusos políticos-ideológicos e jurídicos, mas “ao ar livre” (ou nem tanto).
Rompam-se as Amarras
Que diria Rui Barbosa em face desse processo mais do que kafkaniano? Talvez, que seja algo típico da política na república brasileira? Piorado por sujeitos imbuídos de ideologias mais nefastas do que as de seu tempo? Ou pela síntese dessas?
O Brasil sobreviveu a traidores e regentes, Deodoros e Florianos, Getúlios e Geisels, Henriques e Inácios, e há de sobreviver aos atuais. Todavia, se não rompermos o ciclo, as amarras da continuidade dos abusos, até quando?
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