A esquerda quer que ninguém trabalhe e a ‘direita’ quer quer morram trabalhando, enquanto o trabalho também morre
Esse é o melhor resumo que se pode ter de algumas das discussões sobre a redução da jornada de trabalho de 6×1 para 4×3. Pois dizer que os querem a redução da jornada não trabalham é não compreender a realidade brasileira. Ao mesmo tempo, esperar que uma redução tal resolva os problemas dos trabalhadores, é ilusão. E, factualmente, é difícil esperar uma discussão madura no cenário atual.
O que se pode esperar é que qualquer redução de jornada virá acompanhada de uma redução salarial (ainda que ocultada por questões inflacionárias). E entre manter a jornada de 6×1 e reduzir para 4×3 a solução é mais que uma posição de centro.
Trata-se de uma mudança cultural
Como disse Olavo de Carvalho, “não sou de direita, nem de esquerda, nem de porra nenhuma. Sou da mamãe”. Ou seja, este texto não quer defender proposta A ou B, quer expor os elementos que escapam às discussões, sejam elas de internet, de bar ou parlamentares.
Pode-se destacar que a proposta da oposição, a chamada “PEC da Alforria”, tem seus méritos. Principalmente enquanto discussão do problema. Porém, a pergunta fundamental parece estar sendo evitada:
Afinal, o Brasil precisa de mais produtividade para reduzir as horas ou reduzir as horas para obter mais produtividade?
Trabalho e Jornadas
Primeiro, é importante conceituar “trabalho”. Há uma diferença enorme entre o desgaste de um pedreiro e de um advogado. E não quer dizer que só o primeiro canse.
Um advogado de família, que passa o dia ouvindo brigas intermináveis, pode ter um cansaço maior que o de um pedreiro. Talvez o termo melhor seja “exaustão”. São dois casos que ilustram que não se trata de aumentar o tempo de trabalho para, necessariamente, aumentar a produtividade. E sem entender essa dinâmica, é irrazoável discutir as jornadas de trabalho.
E esse é outro ponto relevante, quais as jornadas de trabalho? Difícil falar de todas, mas pode-se tentar expor o máximo possível.
No caso de uma jornada de trabalho de 6 horas por 6 dias da semana e um descanso, na medida que a PEC da jornada de 4×3 prevê o limite de 36 horas semanais, não faz muita diferença. Matematicamente, as 36 horas estão dentro da PEC e não se pode falar, necessariamente, em perda de produtividade por redução de jornada.
Porém, tome-se outras jornadas, como um professor que tenha 20 horas em sala de aula. Na prática, ele terá mais que isso contratado porque há uma previsão de receber para preparar aulas. Num cenário otimista de vida docente, metade das horas aulas serão repetidas, mas ele ainda gastará algum tempo preparando e revisando o material. Isso sem falar na correção de avaliações e atividades administrativas.
Não é de estranhar que tenha-se uma péssima educação com professores sem tempo de se aperfeiçoarem e preparem aulas, exigindo-se que eles usem do tempo não remunerado para se aperfeiçoarem para a profissão.
Jornadas Piores
Evidente que as jornadas de 40 e 44 horas são as piores. E, com a inflação, alguns chegam a trabalhar 10 horas diárias fazendo 50 na semana para ter as horas extras como complementação de renda.
Pode-se entender o problema por outra perspectiva. Quantas pessoas já não foram a um supermercado em horários alternados e perceberam que há momentos em que os caixas estão desocupados e outros em que há caixas sem atendentes e enormes filas? O quanto a legislação não contribui para esse desequilíbrio?
Ao se falar nas jornadas de 10/20/30 horas, elas tendem a vir em conjunto, o que tende a piorar o problema do transporte, até por elas ocorrerem em grandes cidades. Ou seja, na prática, essas jornadas tendem a ser similares às de 40 horas.
Restam os modelos de 12/36 e 24/48. Nesses modelos, o trabalhador tende a sair do trabalho e descansar por 8 a 12 horas antes de voltar a poder fazer algo. Apesar do ritmo intenso, tendem a ser bem tranquilas em termos de tempo para o trabalhador.
Esclarecidas, minimamente, as questões sobre as jornadas, é preciso passar para a realidade.
A realidade
O problema das jornadas de trabalho no Brasil está no tempo que um trabalhador fica em função do trabalho. Numa jornada de 8 horas, ele fica 8 horas, 1 hora para o almoço e o tempo de transporte.
Numa jornada de 40 horas, isso significa que ele, basicamente, perde 5 dias e, em tese, ele ganha um salário que permite o sustento dele e de sua família. Porém, com o ritmo da economia, é evidente que “sustento” é um exagero em várias situações.
Supondo que ele seja uma pessoa normal, ele ainda terá umas 8 horas de sono. Usando uma hora para o transporte (total) e uma hora para café da manhã e o jantar, é fácil chegar a 20 horas, restando quatro horas livres.
Não é preciso ser um gênio para perceber que esse cenário ainda é otimista, há quem dedique 12 horas de seu dia para o trabalho (contando transporte). E é impossível os pais conseguirem dedicar-se aos filhos devidamente nessa situação. Eles precisam estudar para poderem ajudar os filhos e ainda ter tempo para ajudar os filhos, sendo que estes querem ter lazer com os pais (e os próprios pais querem lazer).
Rendimento
Não obstante, as tantas horas de trabalho tendem a baixar o rendimento. Primeiro porque há uma tendência de ir atrasando ou enrolando as coisas porque há tempo de sobra. Segundo, e talvez mais importante, como um trabalhador pode ter um bom rendimento se ele fica 11 horas em função do trabalho que sustenta a família dele e ele não consegue aproveitar a família? Nalguns casos, sequer consegue sustentar propriamente a família.
Com esse raciocínio, é possível compreender o movimento Let it Root na China.
Para “melhorar”, pode-se avaliar a questão de que praticamente todas as empresas iniciam e terminam o expediente no mesmo horário, criando os horários de pico de transporte que, na prática, aumentam o tempo que o trabalhador fica em função do emprego.
O estresse no trânsito, por sua vez, justifica uma pessoa chegar cansada ao trabalho e, evidentemente, não render. O que significa que, de todas as discussões, é possível que a jornada de trabalho seja a menos importante para o tópico de melhorar a produtividade e a vida dos trabalhadores.
Previsões?
Fundamentalmente, o trabalhador não pode ser obrigado a escolher entre a família e o trabalho. O resultado da discussão atual sugere que a esquerda está assumindo o discurso de defesa da família e a direita está assumindo o discurso de classes ao defender “empresários” contra os “trabalhadores”.
Eis o marxismo cultural.
Inclusive, esse é o problema central da PEC da Alforria, por mais que ela permita a flexibilização, ela não muda a indexação da economia na jornada em relação ao salário mínimo. Sem mudar a indexação, não há porque falar em “alforria”.
Direita e esquerda precisam aprender que há empresários e trabalhadores entre os vilões e os mocinhos. Pois a realidade é mais complexa e não se reduz a classes sociais.
Evidente que a PEC com a Jornada 4×3 se trata de uma armadilha da esquerda para não haver necessidade de aumento real dos salários e de uma real qualificação nas condições de trabalho. Qualquer um que se atente ao problema da pjotização sabe que é uma armadilha.
Em última análise, é difícil esperar que uma solução de base meramente legal seja uma solução. E, ao fim, independente da legislação aprovada, a rotina de muitos trabalhadores brasileiros é e continuará sendo digna de uma rotina de escravos. Exatamente porque eles não terão outra opção a não ser acatar o que o Estado disse que os empregadores podem fazer.
E são pessoas que não podem se dar ao luxo de não estarem empregadas.
Caminhos para uma solução
A PEC da Alforria tem seu mérito ao defender uma flexibilização nas relações trabalhistas, mas falha ao imaginar que empregador e empregado estão em situação de igualdade para negociar.
Além disso, é evidente que é difícil flexibilizar os horários de início e final de aulas, mas há empresas que podem operar em horários alternativos, desde que a legislação colabore. E só o melhorar dessa legislação pode reduzir o estresse do trânsito e aumentar a produtividade.
Qualquer um consegue entender que o brasileiro não precisa de mais horas de trabalho, mas precisa de mais produtividade. E supor que a produtividade se distribui homogeneamente entre as horas dedicadas ao trabalho é uma total ignorância da própria capacidade laboral.
A produtividade tem relação com finalidade. Ninguém produz simplesmente para ganhar dinheiro. Ou seja, um trabalhador estará mais motivado se conseguir sustentar sua família e passar tempo com ela. Quem diria que melhores salários podem ser mais úteis que festas de final de ano? Quem diria que recompensar o time com participação nos ganhos seria melhor que recompensar só a liderança?
E quando a empresa consegue realmente alinhar os propósitos dela com os propósitos dos trabalhadores, ela provavelmente aumentará a produtividade. O que significa que empregado e empregador precisam ser parceiros, não simplesmente cumprir obrigações legais.
O que retorna a discussão para uma questão cultural
Também é por isso que é ridículo que as empresas retirem o tempo que o trabalhador tem para se desenvolver e coloquem cursos aos finais de semana para eles não poderem passar tempo com a família enquanto se “aprimoram” no trabalho. Ninguém aprenderá algo se não quiser aprender, mas as pessoas podem fingir muito bem que aprenderam.
Além disso, é ridículo imaginar que alguém consiga trabalhar 44 horas semanais e aproveitar uma faculdade. Afinal, uma graduação é mais que as aulas.
Com isso, é possível dizer que muitos que defendem a importância do “trabalho árduo” não trabalham 30 horas por semana. Afinal, almoço de negócio não é trabalho do mesmo jeito que ser pedreiro ou advogar causas de família.
Enquanto a direita romantiza o trabalho árduo, a esquerda trabalha arduamente para se manter no poder. E o trabalho da esquerda é útil, enquanto que a direita consegue trabalhar árdua e inutilmente. E haja trabalho árduo.
Basta ver uma página de memes sobre o ambiente de trabalho para se entender a realidade que muitos trabalhadores e empregadores sofrem. Não há trabalho árduo que possa ser pego se ele for inútil e não há redução de jornada que torne um trabalho inútil suportável. Ao mesmo tempo, não há reforma legal (ou manutenção legal) inútil que melhore a vida dos empregadores.
Em suma, independente da reforma aprovada, a rotina de 6×1 e o salário mínimo serão os indexadores culturais das relações trabalhistas. O que significa que qualquer mudança, como uma flexibilização por horas trabalhadas, será contada a partir desse índice. A lei pode mudar o indexador, mas não pode mudar a cultura.
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