As intervenções do Ocidente no Oriente Médio, de Bagdá a Gaza, oferecem uma lição fundamental: o sucesso militar não equivale à consolidação de uma paz duradoura
O desfecho do conflito armado representa somente o início d’um desafio complexo ao Ocidente: o pós-guerra. No caso iraniano, após possível abdicação de Ali Khamenei e a queda do regime, pode-se gerar um cenário no qual a estabilização política, a consolidação das instituições e o desenvolvimento da sociedade civil devem ser apoiados por uma estratégia de longo prazo. Na ausência desses fatores, há risco de atores não estatais ocuparem o vácuo de poder. Ou seja, redes clientelistas ou grupos extremistas, que compromete as aspirações democráticas da população e alimenta a instabilidade. Até mesmo além das fronteiras nacionais.
Por exemplo, Iraque pós-Saddam Hussein transformou-se num fracasso na reconstrução da nação. Da mesma forma, a retirada de Gaza, promovida na época por Ariel Sharon, seguiu-se um vácuo político. Isso favoreceu a radicalização e a ascensão do Hamas. Porém, em ambos os casos, erraram ao desistirem de administrar a situação gerada pelo colapso da ordem anterior. Portanto, a falta de apoio institucional impediu a construção de mecanismos de governança legítimos e estáveis. Tal situação favoreceu a fragmentação do poder e a proliferação de conflitos. Pois sem compromisso concreto com a construção de instituições e a promoção do pluralismo político, qualquer mudança arrisca ser efêmera.
Irã: Uma Oportunidade Frágil e Crucial
No caso do Irã, é muito alto o risco de repetir os erros cometidos n’outros cenários de transição. O regime teocrático demonstrou notável capacidade de resistência. Mas também graças ao seu sistema repressivo, ao poder do Pasdaran (Guardas da Revolução Islâmica, nota do editor) e uma retórica ideológica centrada em princípios religiosos e antiocidentais. No entanto, sob essa estrutura autoritária, desenvolve-se uma sociedade dinâmica, urbanizada e educada. São sinais tangíveis do potencial democrático: as mobilizações femininas, as expressões artísticas e literárias, e as revoltas juvenis. Entretanto, tal vitalidade requer um contexto político-institucional favorável para se traduzir num processo de transformação. Portanto, sem um arcabouço internacional para apoiar a transição e garantir espaços à ação política, arrisca-se que mesmo os impulsos mais genuínos sejam neutralizados ou explorados por novo autoritarismo.
A transição iraniana, conduzida com visão estratégica, gradualidade e pleno respeito à autodeterminação do povo, constituirá um ponto de virada para toda a região. Um Irã democrático e estável, integrado à comunidade internacional, representará mais do que o fim do apoio político, econômico e militar aos grupos armados no Líbano, Iraque, Gaza e Iêmen. Mas também uma oportunidade concreta para relançar um processo de negociação no caso israelense-palestino.
No entanto, a concretização desse cenário exige coordenação multilateral e visão compartilhada. Porém, no momento, são insuficientes. Pois as Nações Unidas gozam de legitimidade formal, mas carecem dos instrumentos coercitivos necessários. A União Europeia mantém um forte compromisso diplomático, mas tem peso geopolítico limitado. Os Estados Unidos da América, possuem recursos e influência, contudo, sofrem com uma crescente perda de credibilidade junto à opinião pública árabe e global. Na ausência de uma direção internacional coerente, dotada de recursos adequados, qualquer proposta de estabilização arrisca-se a permanecer confinada à especulação.
A Ucrânia Como Vítima Colateral da Nova Ordem Regional
Neste contexto geopolítico em rápida evolução, caracterizado por múltiplas tensões simultâneas, é um risco real a marginalização da a guerra na Ucrânia. Por causa da centralidade estratégica do Oriente Médio. A atenção dos EUA aparentemente está se voltando (gradualmente ) ao tabuleiro de xadrez do Golfo Pérsico, Mas também para a gestão (d’uma forma ou d’outra) do dossiê iraniano. Logo, com o resultado de relegar o conflito ucraniano a uma posição marginal na agenda internacional.
A “estratégia magnata”¹ configura-se como expressão de realismo político radical. Neste, os valores democráticos ocidentais tradicionais são intercambiáveis e funcionais à concepção de política externa baseada na busca de interesses americanos. Tal abordagem compromete mais do que a coerência da ação ocidental. Mas também arrisca a confiança dos parceiros europeus e das democracias emergentes na capacidade dos EUA como garantidores d’uma ordem internacional baseada em regras compartilhadas.
A ideia de atribuir a Vladimir Putin um papel de mediação nesta crise parece uma tentativa de restaurar as posições russas ao valor máximo, em termos de legitimidade internacional. Atribuir um papel de negociador ao promovedor da agressão armada à Ucrânia, que contribuiu à desestabilização da ordem europeia, normalizaria o revisionismo geopolítico russo. Essa decisão apresenta diversas complexidades. Porém, especialmente se a observarmos no comportamento do governo americano em relação ao desinteresse pelo G7 e à relutância em aplicar novas sanções contra Moscou. Essa combinação de fatores destaca a inconsistência da política externa americana.
Esses sinais, lidos em conjunto, alimentam a percepção d’um progressivo desengajamento do Ocidente em relação à causa ucraniana. Ou seja, sobre o risco de ser marginalizada em função de novas prioridades estratégicas. Logo, tal evolução implicará seriamente na credibilidade da ordem internacional baseada na integridade territorial e na condenação da agressão.
¹Nota do editor: A “estratégia magnata” geralmente se refere a um conjunto de táticas e abordagens empregadas para alcançar um crescimento significativo e lucrativo, seja em investimentos, negócios ou outras áreas.
A Erosão do Conceito de Ocidente
A atitude adotada pela nova liderança dos EUA sinaliza um enfraquecimento progressivo do conceito do Ocidente como uma comunidade coesa, fundada em valores compartilhados, princípios democráticos e objetivos comuns. Representam descontinuidade perigosa em relação à posição tradicional americana:
- O potencial desengajamento do conflito ucraniano;
- A atitude conciliatória em relação a potências autoritárias (como a Rússia).
Essa mudança estratégica corre o risco de comprometer a eficácia geopolítica ocidental, favorecendo a fragmentação da Aliança Atlântica. Na ausência de liderança e d’uma visão compartilhada, o Ocidente pode se transformar numa coalizão desintegrada. Logo, na qual cada ator atua de acordo com a lógica nacional, abandonando a ideia d’uma ordem internacional baseada em certas regras. Esse cenário representaria retrocesso na construção d’um sistema global baseado na cooperação e defesa da liberdade.
Sendo assim, para a Europa, o desengajamento progressivo dos Estados Unidos obriga o continente a assumir um papel mais oneroso na gestão da própria segurança. A possibilidade de não contar mais com o guarda-chuva dos EUA, que garantiu estabilidade e dissuasão por décadas, exige reflexão profunda. Principalmente sobre a necessidade de desenvolver uma capacidade de defesa autônoma.
No entanto, na ausência de estratégia comum e instrumentos operacionais eficazes, a União Europeia arrisca-se a permanecer um ator incompleto. Portanto, vulnerável às pressões externas e incapaz de influenciar os equilíbrios globais. Esmagada entre crises sistémicas, ameaças híbridas e uma OTAN fragmentada cada vez mais na sua visão estratégica. Sendo assim, a Europa enfrenta o desafio de redefinir a sua identidade geopolítica e a sua segurança continental. Ou será penalizada com a marginalização no cenário internacional.
Guerra e Pós-Guerra: O Verdadeiro Desafio é Político
A simultaneidade dos conflitos no Irã e na Ucrânia exige profunda e radical reformulação da política internacional. A gestão das transições do pós-guerra não pode ser deixada ao acaso ou limitada a operações militares. Em vez disso, requer uma visão política global e perspicaz. Uma visão capaz de promover a estabilidade regional, fortalecer as instituições democráticas e a proteger os direitos humanos. Assim, evitando derivas neocoloniais que comprometeriam a legitimidade das próprias intervenções.
Ao mesmo tempo, chama-se o Ocidente a colocar uma questão crucial quanto ao seu futuro estratégico e baseado em valores… É possível manter a coesão com base em princípios compartilhados ou assistiremos a uma progressiva subordinação a lógicas cínicas e pragmáticas de poder? A resposta influenciará não só o desfecho das crises atuais, mas determinará decisivamente o destino e a sobrevivência da ordem liberal internacional a longo prazo. Portanto, terá repercussões que transcendem as fronteiras regionais e envolvem a estabilidade global.
Tradução de Roberto Lacerda Barricelli do artigo “Geopolitical Transitions and the West’s Crisis: between Iran, Israel and Ukraine“, de Juri Morico para The Conservative.