Ao perguntar “o que é ser um conservador” permeia o imaginário – e até o subconsciente – de diversos indivíduos, que encontrariam em Ortega y Gasset e Michael Oakeshott os representantes d’uma tradição norteadora
Quem disse que conversador não pensa nas bases? O padre Diogo Feijó dizia que o povo tende sempre à posição mais moderada. Se no século XIX, no Brasil, essa tendência beneficiava-se do embate político entre liberais e conservadores, outras nações não experimentaram tamanha ‘sorte’. Nem antes, tampouco depois. Ademais, em nossa época, os maus aproveitam-se para impor as piores ideologias, disfarçadas sob o manto da moderação. Dessa manipulação nasce o ambiente propício ao que Ortega y Gasset chamou “Rebelião das Massas”. Assim como tal ambiente consrói-se pela oposição de excessos racioanlistas em política, que Michael Oakeshott noemará: Política da Fé e Política do Ceticismo.
A Religião da Humanidade
No século XVIII, a França experimentou uma divisão partidária entre grupos revolucionários diferenciáveis por graus de fanatismo ideológico. Para o intelectual galês Christopher Dawson, ambos seguiam o que intitulava-se “a religião da humanidade’. Isto é, uma ideologia com elementos espiritualistas, destronando o Deus transcendental, principalmente cristão, e o substituindo por entes ou manifestação da natureza. Ou seja, colocando o homem como centro do universo.
Indivíduos das camadas populares menos abastadas de Paris viam nos líderes da Revolução os salvadores, enquanto os mesmos arrogavam-se o sacerdócio da nova religião. Tanto no assassínio de Marat, como nos de Danton e Robespierre, os sentimentos de perda e vingança dirigiram as reações populares. Enquanto uns comemoravam, alguém gritou a Robespierre “tens o sangue de Danton nas mãos. Já outros, exigiram a execução da assassina de Marat.
Mas o que impulsionou as massas a tais comportamentos? O que transformou a moderação no privilégio d’uma época e a desgraça d’outra; benefício d’um povo e malefício d’outro? Encontraremos caminho nas obras de dois gigantes do século XX, negligenciados e até achincalhados pelo soberbo e inútil mainstream intelectual tupiniquim. Uma claque neoacadêmica que representa – numa justa homenagem a Monteiro Lobato, que nos alertara – os tatuíras da Academia.
O que vem da Espanha?
No século XVI, um espanhol nos brinda com o maior romance-social da história da literatura latina. Da pena de Miguel de Cervantes Saavedra ganha vida “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha“. Em castelhano “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”. Cuja primeira edição publica-se em Madrid, a 16 de janeiro de 1605.
Dom Quixote é um fidalgo sem qualquer qualidade de destaque, que absorto nos romances de cavalaria, perde o discernimento entre a fantasia e a realidade. Sendo assim, parte numa ‘aventura’, imitando o comportamento dos queridos personagens. Num mundo em degradação, Dom Quixote depara-se com a rejeição aos valores que alicerçam os romances de cavalaria – ainda que mais ou menos exagerados.
O Cavaleiro da Triste Figura tornou-se fonte inesgotável de estudos para os atentos e interessados. Não passou despercebido sequer pelo dramaturgo mexicano Roberto Gomez Bolaños. Por conseguinte, no programa televisivo Chapolin referiu-se ao Quixote no episódio introdutor do personagem Seu Mundinho, interpretado por Ramon Valdés – o eterno Seu Madruga.
Ora, se não escapou ao “Chaves”, como escaparia ao maior intelectual espanhol do século XX? Também em Madrid, o gigante José Ortega y Gasset publicou seu primeiro livro, em 1914, sob o título “As Meditações do Quixote”. Porém, não há abordagem do personagem em si, mas inspiração inegável, posto que busca enxergar Dragões onde geralmente só vemos moinhos de vento.
O autor de “As Meditações do Quixote”

Ortega y Gasset nasceu em Madrid, a 09 de maio de 1883, onde passou a sua vida. Casou em 1910, com sua única esposa e companheira, Rosa Spottorno Topete. Faleceu na mesma Madrid, em 18 de outubro de 1955. Porém, tornou-se o maior filósofo espanhol do século XX, também ensaísta, jornalista e fundador da Escola de Madrid. Mas também influenciou grandes nomes da filosofia, sociologia e antropologia, como Julián Marías, Johan Huizinga e Karel Čapek.
Para o espanhol, uma elite intelectual deveria responsabilizar-se pela educação política das massas, em contraposição ao controle do homem pelo Estado. Assim como do excesso de individualismo, que matava a percepção do eu como integrada ao todo. Esse diagnóstico adveio principalmente da degradação espanhola da época. Marcada pela entrega das posses de Cuba, Porto Rico e Filipinas aos Estados Unidos da América, em 1898, na Paz de Paris.
A despreocupação dos homens com os “problemas nacionais” era sintoma de sua ruptura com a sociedade espanhola, com a Espanha, com um “ser espanhol”. Sendo assim, aos 31 anos, reúne ensaios sobre temas diversos. Mas que investigam a formação do pensamento filosófico espanhol e movidos pelo que – parafraseando Spinoza – chamou de “Amor Intellectualis”. E assim escreveu e publicou as Meditações do Quixote.

O “drama da existência humana” é tratado por Ortega y Gasset, aproveitando o contexto espanhol. É interessante acompanhar o desenvolvimento do pensamento orteguiano, começando com algum neokantismo e influência de Stuart Mill. No entanto, encontrando com Edmund Burke, Husserl, Miguel de Unamuno e Alexis de Tocqueville na maturidade. Logo, saindo do idealismo para uma postura conservadora.
Quem eu sou?
Para Ortega y Gasset, “eu sou eu e minha circunstância”. Ou seja, eu sou um indivíduo. Portanto, distinto do meio e do recorte de realidade ao qual tenho acesso. Todavia, vivendo sob sua pressão e influência. Algo que vemos desde a Família e a Igreja, até as salas de aula. Entretanto, não significa que um indivíduo seja somente o que o meio faz dele. Mas é inegável a influência que fatores como criação familiar, formação religiosa, a escola etc., exercem sobre nós.
Também devemos compreender que a formação de nossa personalidade e imaginário serão fundamentais no desenvolvimento de nossa relação com o mundo. Mas principalmente com o outro, e mais severamente com “todos os outros”. Se privada e individualmente agimos ou reagimos de determinada forma a certas situações, quando absorvidos numa massa, podemos perder a razão e agir em oposto.
Neste contexto, entende-se a segunda parte da frase: “e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Portanto, se o homem não salvar sua “circunstância” – a realidade que o rodeia -, ele perde a si mesmo e torna-se o que o filósofo chama de “homem-massa”.
O Homem Massa de Ortega y Gasset
Quando abandonamos os valores e princípios que, cultivados, forjam os costumes e tradições, por sua vez protegidos por instituições primárias como a Igreja, a Família e as Livres Associações, tornamos-nos o “homem-massa” de Ortega y Gasset. E é esse “homem-massa”, para Gasset aniquilador do “eu”, que é presa fácil da demagogia, das falsas religiões, das nefastas ideologias etc. Ou seja, que pede ao Estado para conduzir o destino da sociedade, intervindo até nos menores aspectos das relações individuais. Assim como substituindo essas instituições, derrubando os costumes e tradições e impondo novos princípios e valores. Em resumo, que faça a Revolução e, com ela, institua o Inferno na Terra.
Somente a restauração da “circunstância” pode salvar o indivíduo da Rebelião das Massas. Mas como dá-se tal processo no comportamento das massas e sua relação com o campo político? Uma das mais brilhantes ‘respostas’ veio da Inglaterra.
A grande Escola da Tradição Conservadora
O que é ser conservador? Para o filósofo britânico Roger Scruton, é compreender que as coisas admiráveis são muito difíceis de construir, mas muito fáceis de destruir. Portanto, devemos protegê-las. Mas também significa que de tempos em tempos reformaremos, pois nenhuma construção permanece sólida e preserva seu esplendor, sem a devida manutenção.
Todavia, ao reformarmos, temos por obrigação lembrar que a sociedade precisa respeitar um acordo entre os vivos, os que já partiram e os que virão. Ou seja, as tradições – aqueles princípios, valores e costumes que resistiram ao teste do tempo – são as bases desse acordo.
No entanto, Scruton não expõe uma ideia original, mas os fundamentos d’uma Escola. Como um conservador britânico, tal filósofo integra-se à herança intelectual de Edmund Burke, cuja influência entende-se pr’além mar. Como testemunha o próprio Ortega y Gasset. Todavia, Burke lança as bases da atitude conservadora, cabendo a cada um questionar-se o que é ser conservador dentro de sua circunstância.
Logo, Gasset perguntaria: “O que é ser um conservador espanhol?”. Enquanto isso, Russel Kirk tratou do conservadorismo americano, e Visconde de Cairu e João Camilo de Oliveira Torres, do conservadorismo brasileiro… E João Pereira Coutinho, do conservadorismo português etc.
Ainda assim, há a necessidade de universais, como Burke. Todos os conservadores têm em comum a postura contrária às ideologias, respostas fáceis e às propostas revolucionárias. Mas, o que mais?
Michael Oakeshott: Ainda na Terra de Sua Majestade
Em 11 de dezembro de 1901, na pequena área de Chelsfield, no Condado de Kent, ao sul de Londres, nasceu Michael Joseph Oakeshott. Curiosamente, também inicia sua vida acadêmica e intelectual no idealismo. Mas chega à maturidade no conservadorismo, sendo um de seus principais pensadores.

Oakeshott sintetiza o que é ser conservador numa célebre passagem da obra Racionalismo na Política. Aliás, um inimigo do racionalismo e estudioso das causas que o introduziram na política.
“Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica”.
O determinismo racionalista criticado por Oakeshott é a maior arma do degamagogo para enganar e induzir o “homem-massa”, de Gasset. Como o “homem-massa” deseja que o Estado assuma o controle de sua vida, principalmente de suas responsabilidades. Não resistirá aos discursos de quem promete os melhores sistemas (de educação, de saúde, de justiça ‘social’, de segurança etc)?
A Política da Fé em Michael Oakeshott
Em A Política da Fé e a Política do Ceticismo, numa atitude intelectual similar àquela presente ao Livro X da Ética a Nicômaco, de Aristóteles (e explicada por Santo Tomás de Aquino, em Sobre os Prazeres), Oakeshott critica os excessos em política. A Política da Fé é a típica postura do racionalista, desejando um mundo determinado por ele. Logo, sem espaços para as culturas e suas expressões variadas.
O sistema de saúde deve ser planejado, determinado e executado conforme as ideias dos racionalistas, à revelia das realidades distintas, das consequências variadas. Pois não importa se no interior do Paraná o que melhor funciona é um sistema que respeite aquela realidade, ou se no Texas a melhor educação respeita certos costumes. Para o racionalista, o melhor é sempre o que ele e seus camaradas ‘especialistas’ determinarem.
Portanto, a Política da Fé baseia-se na crença inabalável do racionalista, independente de qual ideologia escolha – comunismo, nazismo, fascismo etc. É a política dos planejadores centrais e ditadores de toda sorte; e o discurso demagógico é sua expressão retórica.
Um pouco de ‘fé’ é saudável, pois nos afasta do niilismo, da total desesperança, que paralisa, petrifica. Mas uma “Política da Fé” é o excesso racionalista, a receita para a rebelião das massas, a revolução e o desastre.
Política do Ceticismo
N’outra ponta, no extremo oposto da Política da Fé, há a Política do Ceticismo. Segundo Oakeshott, contrária a qualquer inovação, seja revolucionária ou reformista. Ou seja, a paralisação, a manutenção excessiva do status quo, é “deixar tudo como está e ponto”. Uma descrença em qualquer capacidade humana de melhorar, resolver, solucionar, fora de fórmulas testadas. Por conseguite, impedindo os testes necessários para o cultivo de tradições reais.
A construção mofa, degrada, apodrece, descasca e fica a ponto de desabar. Mas o adepto desta política não permite reformas se não usarem exatamente a mesma tinta, ou o mesmo material, do mesmo fabricante, da mesma cor etc.
Este é outro tipo de excesso racionalista, que difere do primeiro por não ser revolucionário. Infelizmente, talvez pela falsa imagem que uma imprensa ideológica e demagógica construiu sobre os conservadores, as massas identificam-nos como adeptos da Política do Ceticismo. Mas nada mais distante.
Para Michael Oakeshott: Onde está o conservador?
Para Michael Oakeshott, o conservador possui uma saudável dose de ceticismo, pois deve ser contrário às ideologias e às revoluções. Mas, por isso, é adepto das reformas que respeitem as tradições e as complexidades culturais, como influências regionais, porém, que mantenham a sociedade longe dos Políticos da Fé e dos Políticos do Ceticismo; dos excessos em política.
Nelson Rodrigues sintetizou o problema numa frase simples: “Sou reacionário. Reajo a tudo o que não presta”. Oakeshott deixa similar mensagem, como quem diz “Sou conservador. Conservo tudo o que presta, descarto o que não presta”.
Para ele, as demagogias do racionalismo são a perseguição da “política da perfeição”. E como não somos perfeitos… O próprio Michael Oakeshott era um cético, mas jamais um racionalista. Pois considerava as ideologias como utópicas e os demagogos como defensores de projetos utópicos, e o conservador um realista – sem excessos.
Há quem chame Oakeshott de “niilista solitário”. Não consigo vê-lo assim. Minha impressão é de que cabe a ele uma definição de Ariano Suassuna:
“O otimista é um tolo. O pessimista é um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.
Michael Oakeshott deixou-nos a 19 de dezembro de 1990. Portanto, partiu num navio de um porto seguro, com direção ajustada, estrutura sólida e destino à eternidade.