Como desenvolver o melhor modelo jurídico de justiça, quando nem sequer somos capazes de determinar o que é justiça, ou diferenciar o “justo” do “injusto”?
Na obra Henrique VI, de Shakespeare, um rebelde assustador chamado Dick, o Açougueiro, diz: “A primeira coisa que faremos é matar todos os advogados”. Mas advogados não protegerão o Estado de Direito e defenderão a justiça? Em seus ensaios sobre justiça, o filósofo Chaim Perelman propôs-se a “analisar cientificamente o conceito de justiça”. Portanto, objetivava “distinguir a variedade de seus significados e usos”. Então, revelando a ambiguidade e a confusão conceitual que permeiam a busca por justiça. Ele observou que, apesar da crença na justiça perante a lei, os advogados viam tradicionalmente a justiça como simplesmente “conformidade com a lei”. Em sua visão, “não violar a lei é a maneira aceita de implementar a justiça”.
Mas e se a lei for injusta?
Portanto, filósofos preocupados com a justiça duvidaram da capacidade dos advogados quanto às questões abstratas “superiores”. Para Perelman, embora ambos os lados d’uma disputa jurídica buscando por justiça. Muitas vezes “os lados opostos simplesmente não têm a mesma concepção de justiça”. Ele explica:
“é um fato inegável que a justiça tem muitas facetas, dependendo das teses das partes em conflito. Ademais, por milhares de anos, em conflitos públicos e privados, em guerras e revoluções. Em processos judiciais e em conflitos de interesses, antagonistas declararam e tentaram provar que a justiça estava do seu lado. E assim, a noção parece inextricavelmente confusa.
O argumento de Perelman é bem fundamentado. Por essa mesma razão, os tribunais de direito comum evitavam se referir a noções amorfas de “justiça” ao resolver disputas. O direito deveria ser encontrado na legislação ou no estudo de casos anteriores, não filosofando sobre o que pode parecer “justo” para um observador. Para os juristas da tradição liberal clássica, basta regras jurídicas claras e previsíveis para as pessoas organizarem suas vidas de acordo. Em caso de disputas, o papel do juiz é aplicar as regras corretamente para garantir o resultado correto entre as partes na disputa específica.
Estado de Direito para Friedrich A. Hayek
Para os liberais clássicos que seguem a teoria do Estado de Direito de Friedrich von Hayek, a mera legalidade não basta. A justiça sob o Estado de Direito requer a maximização da liberdade ou a minimização da coerção. Friedrich Hayek rejeitou as leis arbitrárias e caprichosas, pois violam a liberdade individual. Todavia, reconhecendo o direito como sujeito a princípio “superior” de salvaguarda da liberdade individual. A justiça mantém uma abreviação coextensiva ao Estado de Direito. Ou seja, tratará os casos semelhantes igualmente e regerá por regras iguais, claras e previsíveis.
Perelman refere-se a essa noção de justiça como “o modelo jurídico”. Sendo assim, o modelo jurídico não busca formular princípios teóricos ou filosóficos de justiça. Por conseguinte, Perelman observa que os filósofos consideravam o modelo jurídico como inadequado para conceituar o significado de justiça. Isto é, “os filósofos, pelo menos os racionalistas, tradicionalmente não hesitavam em expressar seu desprezo pelo direito, suas técnicas e praticantes”. Historicamente, os juízes de direito consuetudinário não consideravam apropriado expressar suas opiniões pessoais sobre se as normas jurídicas eram “justas” ou não.
O objetivo desse modelo jurídico era simplesmente apurar as normas jurídicas relevantes e aplicá-las corretamente. Pois o modelo jurídico leva a sério a distinção traçada por Hayek entre “o que é, de fato, direito válido e o que deveria”. Assim sendo, os juízes visam resolver disputas de acordo com o direito. Mas não embarcar numa viagem judicial para imaginar o que o direito “deveria ser”. Nesse modelo, com regras claras e bem fundamentadas, haveria pouquíssima necessidade de leis e menos de advogados. Perelman explica:
“Em todas as cidades utópicas, e por suposto racionais, não há lugar reservado para os praticantes do direito, mesmo quando essas cidades são criações de juristas… Em países utópicos, existem poucas leis; simples e claras, imediatamente acessíveis a todos e que não é necessário interpretá-las para compreendermos: “A partir de agora, nada de advogados. Longe de vê-los como instrumentos de justiça, os utópicos consideravam os advogados profissionais como uns homens determinados a distorcer o sentido da lei e a viver de trapaças”.
A Jsutiça e o Juiz Ativista
Nas últimas décadas, as distinções analíticas entre o modelo jurídico do “Estado de Direito” e as teorias políticas da justiça tornaram-se indistintas. O currículo da faculdade de Direito dedica-se a aprender o que o direito “deveria ser”. O ímpeto para diluir as distinções entre direito positivo e normativo veio, em grande parte, daqueles que — com medo constante de legisladores desonestos — veem o papel dos juízes como decidir quais regras jurídicas são “justas”.
O juiz ativista, tendo a “justiça” como sua luz guia, garantirá que a justiça seja feita e não deixará que a lei o atrapalhe. Fiat justitia, pereat mundus!, gritam os defensores da justiça. Aqueles que defendem uma noção de justiça politicamente compreendida não se preocupam em distinguir entre o positivo e o normativo, o jurídico e o político. Frequentemente usam a frase “isso é ilegal” para dizer que, em sua opinião, “isso não deveria ser a lei”. Pois levaria a resultados injustos.
Como argumenta Perelman, tal alternância entre “é” e “deveria” não é necessariamente irracional nos casos em que o “deveria ser” reflete convenções sociais. Nesses casos, “é como deveria ser” porque o “deveria” reflete “um comportamento costumeiro ou [reflete] uma situação tradicional”. O “é” e o “deveria” não estão em conflito. Um exemplo seria dizer que as mulheres “deveriam” ter espaços privados designados — uma convenção que antecede em muito a lei. As coisas são bem diferentes quando o “deveria” é revolucionário, quando o “deveria” busca romper com as convenções estabelecidas.
Conceito Revolucionário de “Justiça”
Nesse caso, o argumento seria que homens que se identificam como mulheres “deveriam” ter permissão para usar banheiros femininos. Não é de se admirar que os defensores de ambas as proposições de “deveria” afirmem que sua posição “é” a lei. Ambos interpretam a lei que proíbe a discriminação sexual em conformidade com o que acreditam que a lei “deveria” dizer. Daí as guerras dos banheiros, que se tornaram tão tensas e, em alguns casos, até violentas, que Dick, o Açougueiro, de Shakespeare, pode muito bem ter visto isso como uma situação em que os advogados de ambos os lados — longe de salvaguardar a justiça — apenas atrapalham a liberdade.
Como esse exemplo ilustra, a noção de “justiça” frequentemente expressa uma opinião política ou ideológica bem revolucionária sobre a reforma social. Por exemplo, a lei contra a discriminação sexual, que agora serve de plataforma para as guerras de gênero entre “feministas baseadas no sexo” e “feministas inclusivas de gênero”. Contudo, que começou objetivando supostamente alcançar “justiça” para as mulheres. As feministas argumentaram que é “injusto” que homens e mulheres tenham experiências de vida diferentes. “Justiça” exige que homens e mulheres tenham oportunidades iguais para construir uma carreira e remuneração igual por seus esforços.
Agora temos leis que proíbem a discriminação com base no sexo. Todavia, o que essas leis significam — previsivelmente — reflete as diferentes opiniões sobre o que a lei “deveria ser”. Cada facção em conflito está determinada a ver “justiça” feita. Isso é “justiça” ou é somente um caso no qual dá-se a força legal às opiniões de engenheiros sociais. Conquanto alimentadas pelos “advogados profissionais, como aqueles homens determinados a distorcer o significado da lei e viver de trapaças” citados por Perelman? Ele coloca a questão da seguinte forma:
Os valores e normas pressupostos no estabelecimento da justiça são expressões da razão ou não são mais do que expressões das nossas paixões e dos nossos interesses?
O Conceito Rothbardiano
Os leitores saberão que Murray Rothbard vê a justiça como um conceito moral e ético, derivado da filosofia do direito natural. Conquanto justiça não trata-se de guerra ideológica, ou disputar qual política vencerá na arena pública. Na qual o vencedor geralmente é a facção com os bolsos mais fundos para financiar uma guerra jurídica sem fim. Em vez disso, a justiça enraiza-se na defesa da autopropriedade, da propriedade privada e do princípio da não agressão. A teoria da justiça de Rothbard é simples o suficiente para nos permitir derrotar os exércitos de advogados que impulsionam os motores da guerra jurídica:
Em suma, existe outra alternativa para o direito na sociedade, uma alternativa não apenas ao decreto administrativo ou à legislação estatutária, mas até mesmo à lei criada por juízes. Essa alternativa é o direito libertário, baseado no critério de que a violência só pode ser usada contra aqueles que iniciam a violência e, portanto, na inviolabilidade da pessoa e da propriedade de cada indivíduo contra a “invasão” pela violência. Na prática, isso significa tomar o direito consuetudinário, em grande parte libertário, e corrigi-lo pelo uso da razão humana, antes de consagrá-lo como um código ou constituição libertária permanentemente fixado.
Publicado originalmente em Mises Wire, via Mises Institute, intitulado “The Juridical Model of Justice”. Traduzido por João Pedro Moscatti.
É fascinante ver como justiça se torna um campo de batalha entre advogados e juízes ativistas, com ambos defendendo o deveria como se fosse o é. Me faz rir a ideia de cidades utópicas sem advogados, um sonho para quem odeia processos! Mas, claro, se o deveria refletir convenções, como as salas de banheiro, então tudo bem. Afinal, quem não quer uma justiça que resolve tudo com um A partir de agora…?app đếm ngược thời gian học