Idiotas vão ao Céu? Sejam úteis ou inúteis? Deus é o único que pode tirar-nos tal dúvida, mas alguns inspirados sempre apontam à Salvação… Tema mais recorrente em literatura do que o pregado nas masmorras das Academias
Sois parvo? Sorte a sua! Pois brigo dia a dia contra a Danação, mais do que pela Salvação. Quero o privilégio da parvoíce, pois o conhecimento do Bem e do Mal, faz mais Mal do que Bem aos soberbos; e inteligência sem a luta constante contra a soberbia é impotência, não virtude. Talvez nem seja inteligente, ou só mais um carregador de piano que se acha o próprio Mozart… Vai saber!
Todavia, ao Parvo está reservado um canto do Céu! Ao menos é o que nos indica a alta literatura luso-brasileira. E antes dela a inglesa tratou da própria compaixão humana para com os Parvos, que começa na risada e termina em comoção. Vimos uma sátira na infância, e revemos até hoje, provavelmente sem perceber, mas rindo em meio à nossa nostalgia.
São tantos os exemplos, mas não foi difícil selecionar alguns. A dificuldade me encontrou quando em necessidade de diferenciar o Parvo e o Louco. O Parvo é lúcido, só não é sensato. E quantos loucos demonstram sensatez assustadora? Agradeço ao nosso maior literato, pois afiou-me a clareza dessas distinções. Logo, vamos ao texto…
D’antes e depois da Salvação
D’antes da Crucificação do Cristo, havia sábios que se preocupavam com o tema da Salvação. Não pelo aspecto cristão, por óbvio! Porém, houve aproveitamento das suas ideias por grandes Doutores, como nos casos de Platão e Aristóteles. Este, dizia que “há três aspectos das coisas que devem ser evitados nos modos: a Malícia, a Incontinência e a Bestialidade”.
O incontinente é culpado, mas não tem dolo, contudo, enquanto o malicioso tem dolo, o bestial pode ser parvo ou malicioso. Pensemos no pobre infeliz que peca sem malícia, sem maldade, que por ingenuidade, toleima ou assombro, se deixa seduzir e mover pela “manifestação da natureza animalesca”. Merece esse pobre diabo o Inferno? Entretanto, o que dizer daquele que premedita, que conhece e escolhe fazer o mal? Ou que o faz com requintes animalescos, por exemplo, contra quem não pode se defender.
Não à toa estão os traidores no lugar mais profundo do Inferno de Dante. No entanto, não encontramos parvos no Paraíso dantesco, mas não estando tampouco no Inferno, resta-nos crer em sua estadia no Purgatório. Isso se justifica para a época, posto que o Purgatório foi formalizado na Doutrina da Igreja Católica durante o Concílio de Trento, no século XVI, enquanto Dante nasceu no século XIII e morreu na segunda década do XIV.
Também justifica o porquê o maior dramaturgo português eleva o parvo ao Céu, naquele século de descobrimentos.
A Salvação do Parvo
Na literatura vicentina a Salvação ocupa lugar de destaque. Todavia, o contraste entre o parvo e os maliciosos não alcança menor dedicação do maior dramaturgo português. Gil Vicente demonstrou compaixão à parvoice e coragem contra a malícia.
(Spoiler) No “Auto da Barca do Inferno”, Gil Vicente muito à moda de Dante, expõe os condenados conforme a gravidade de seus pecados. Contudo, enquanto este manda divide o Purgatório entre os pecados capitais, e o Inferno de acordo com o nível de consciência, ou uso da inteligência humana para o Mal, aquele junta ambos na mesma crítica.
Para ambos, não basta ser orgulhoso, ou avarento, ou luxurioso, é necessária a malícia, para mandar ao Inferno. Entretanto, o português expõe essa intersecção mais claramente do que o italiano. Todavia, não entra na discussão sobre arrependimento, pois na magnum opus dantesca, os sinceramente arrependidos em vida ocupam o Purgatório, coisa que na obra vicentina será tratada em ‘auto menor’.

No auto mais famoso e celebrado de Gil Vicente, o Parvo não só entra no Céu, como ‘dribla’ e até faz troça do Diabo. Pois é Parvo! Não pecou por malícia, tampouco fez qualquer maldade. Suas ações foram movidas por inocência, ingenuidade e humildade. Sem posses, tem só seu bem imaterial à oferecer.
Essa compaixão pelo tolo, sofrido e de puras intenções, deixou fortes marcas e influenciou profundamente outros literatos. A situação de vulnerabilidade do Parvo, sua capacidade de nos fazer rir e comover… Encontramos n’outros gigantes da literatura, porém, no tema da Salvação teremos um expoente brasileiro.
Comédia e Compaixão
A miséria é uma das condições comuns ao parvo na literatura. Talvez a mais importante; com certeza indispensável. Como se ao parvo estivesse destinada a miséria material. A exploração piedosa desse paradigma nos brindou com cenas imortais da alta literatura.
Em “Sonhos de Uma Noite de Verão”, de Shakespeare, os ricos e poderosos riem durante a peça apresentada pelos pobres e parvos. Entretanto, quando estes demonstram entrega aos personagens, lhes imprimindo emoções genuínas, os mesmos senhores se comovem e aplaudem sinceramente.
Na obra “Quincas Borba”, Machado de Assis faz do parvo um afortunado, mas só no quesito material. Pois que volta à condição necessária aos parvos, morrendo na miséria e enlouquecido. Rubião, que devia ser malicioso e calculista , como seu mestre, se demonstra parvo e incontinente; sua lucidez é obliterada por uma falsa paixão, perde tudo; de insensato, termina insano. Na contramão do Quixote, de Cervantes, que no último momento recupera a lucidez, mas jamais fora parvo.
Como não se comover com o fim de Rubião? Mas ao invés da Salvação, o Bruxo do Cosme e Velho oferece o reconhecimento da própria parvoice. O personagem, em seu último suspiro, repete a máxima do mestre:
Ao vencedor, as batatas.
As Más Interpretações
Todavia, há quem use o tema para uma pregação errônea e perigosa. Como se a miséria justificasse a maldade, e a esperteza para defender-se da injustiça fosse o mesmo que a malícia. Numa extensão da inocência e ingenuidade do Parvo aos que usam da inteligência para obter vantagens imorais e conquistar objetivos prejudicando os outros, lesando em seus direitos, liberdades, fé…
Em “Capitães da Areia” (1937), um jovem Jorge Amado se debruça sobre um recorte da realidade baiana, mas especificamente de São Salvador. O banditismo gerado pelo abandono de crianças miseráveis à própria sorte. Que não deixou de ser real, por ser um recorte.
Setores ideológicos aplaudem a obra, gerando repulsa e vaias dos seus opostos. Ambos o fazem pelo o quê “Capitães da Areia” não é! Uma ode ao banditismo, ou uma justificação das más escolhas, do crime ao invés da honestidade, por causa de mazelas inerentes ao Homem, como a fome, a sede e a pobreza material. Há pressão só ambiente, e o autor traz essa visão numa cena específica, mas não é determinante; ainda temos a escolha.

Também acusam a obra de justificar a escolha por banditismo como meio de “alcançar sonhos” e “atender desejos mundanos”. Como se defendesse a prática de crimes em busca de uma vida ‘melhor’, vista pelas lentes ofuscadas do hedonismo. A vida mais miserável, dedicada a prazeres efêmeros.
Contudo, não é a realidade da obra, tampouco parece ser sua intenção. Talvez tenhamos um caso anterior, mas similar ao Tropa de Elite, de José Padilha. Produzido numa intenção ideológica, com discurso para fins específicos, mas que em sua construção demonstra o contrário. Só falta ser assim compreendido também pelas massas.
Por que ignorar os aplausos ideológicos?
Primeiro, porque toda a desgraça exposta tem origem na ausência da Família; todos são órfãos ou rejeitados. E Amado não faz esforço para esconder, antes, deixa clara a influência da ausência do pai nas decisões de Pedro Bala.
Segundo, os personagens com os piores pecados têm fins bem desagradáveis. A única inocente com fim trágico, Dora, foi forçada à prostituição. Numa denúncia aterradora do autor à exploração sexual infantil, mas não negligenciando a denúncia da sexualização infantil e a deturpação causada nas mentes desses adolescentes. Sendo assim, a principal cena dessa alegoria ocorre com Pedro Bala ‘convencendo’ uma menina a fazer sexo anal, em troca de não ser deflorada. Pior! A rapariga sente prazer, numa relação que se não ocorreu pela força bruta, não foi ‘totalmente consensual’.
Sem Pernas comete suicídio, fugindo da polícia. Volta Seca é condenado a 30 anos de cadeia, sendo retratado como alguém sombrio, frio e cruel; um médico afirma que o criminoso não nascera assim, mas fora transformado pelo ambiente. Entretanto, quem rouba a cena é o Promotor do caso, descrevendo a crueldade nos assassinatos, enquanto Volta Seca permanece impassível no tribunal. Almiro, um personagem menor e provavelmente gay, morre de varíola.
Por fim, os únicos personagens a alcançarem uma vida melhor e digna são: a) Pirulito, que se converte ao Cristianismo, à Igreja Católica; b) Professor, que virá um pintor bom e famoso e c) João Grande, o Bom Negro, que vira marinheiro. ‘Salvos’ pelo Cristianismo, a Arte e a Marinha (Militar)…
Amado e Stalin
Aos 25 anos, quando publicou “Capitães da Areia”, para o jovem autor e burguês Jorge Amado, seu pai não era o coronel João Amado se Faria, mas Stalin. Portanto, não surpreende que Pedro Bala se desenvolva num ‘militante proletário’, porém, é notório a incompatibilidade entre o tratamento que o autor dá a temas como ausência de Família, rejeição familiar, religião e o fim de personagens cruéis e promíscuos, em Capitães da Areia, com a ideologia comunista.
Ainda assim, essa obra é celebrada por tais ideólogos como uma defesa de ideais comunistas. Logo, é atacada relativamente por quem se oponha ao comunismo, sem o devido estudo. E a mudança de Jorge Amado na maturidade, abandonando a ideologia, se recusando a ser um propagandista ao invés de autor e pensador crítico, lhe conferiu ameaças e tentativas de boicotes, por líderes comunistas,. Porém, diferente do grande baiano, estão na lata de lixo da história brasileira.
Amado confessa publicamente a presença de discurso político em suas primeiras obras, até 1955. Dizia-se profundamente stalinista! Mas ‘fosse como fosse’, suas raízes não deixaram esse discurso – que chamou de excrescência – dominar “Capitães da Areia”. Aos 45 anos, já não era mais um comunista, tampouco um ideólogo.
Agora, voltemos ao tema central! A Salvação e o Parvo. Que encontramos realmente distorcida em folhetins de pseudo-cristãos modernistas – Leonardo Boff, Frei Beto… -, textos de jornalistas militantes e obras de falsos idolos como Paulo Freire e Florestan Fernandes. Mas é elevada por quem produziu alta literatura.
O clímax da Salvação do Parvo na Literatura Brasileira
Foram necessário quatro séculos, desde Gil Vicente, e outros sete, após Dante, para o tema alcançar seu clímax, na Literatura Brasileira. E me desculpem (Ou não) as demais literaturas nacionais, mas não soube de outra obra e autor que o tenha alcançado.
E de Auto a Auto, fez Ariano Suassuna um brilhante trabalho. No “Auto da Compadecida” é visível o contraste entre João Grilo – malandro, esperto, malicioso – e Severino – cangaceiro, matador e Parvo. A inteligência do sertanejo pobre se revela no julgamento das almas; não era só esperto, nem ingênuo.
A argumentação da Virgem Maria intercedendo por aqueles postos diante de Deus Filho, do Cristo crucificado, lembra as divisões das esferas no Purgatório. E para lá são enviados, tendo acesso à Salvação por se arrependerem no último momento, por terem pecado por amar demais, ou por avareza, ou por orgulho… O Bispo e o Padre, na hora da morte pedem que Deus perdoe seu algoz, a esposa infiel pede perdão ao marido traído, que assume suas culpas e a perdoa…
João Grilo é o que está em pior situação perante o altíssimo, pois usou sua inteligência para o mal. Ainda que Maria argumente em seu favor que a esperteza é a arma do pobre contra as injustiças, o próprio assume que gostava de passar a perna. O acordo que consegue é a ressurreição! Grilo volta para ter a oportunidade de se arrepender, mudar e fazer as coisas direito.

Severino de Aracaju
Só um entra no Céu sem questionamentos! Severino, o cangaceiro, o matador, devoto de Padre Cícero e Parvo.
Afinal, nenhuma das mortes que causou foram por malícia. A frase do Cristo “eles não sabem o que fazem” jamais fora empregada com tão fatalmente numa obra literária. Sendo assim, Severino era Parvo, miserável, uma alma torturada por injustiças cruéis desde criança, quando a Família foi assassinada por autoridades, e foi submetido ao pior lado do ser humano. Não é um mero “caso do ambiente”, mas um indivíduo levado ao extremo da dor, sem deixarem enlouquecer.
Severino acredita fazer um trabalho divino, limpando sua terra dos maliciosos, dos piores pecadores. Se tivesse a consciência dos seus pecados, provavelmente cairia de joelhos sinceramente arrependido e implorando por misericórdia a Deus. Não foi necessário, pois o Cristo conhecia o coração do cangaceiro e estava inteirado da situação.
A morte de Severino também é prova de sua parvoice. Pois, João Grilo o engana, garantindo ser capaz de o ressuscitar com uma flauta mágica. Logo, poderia morrer temporariamente, encontrar com Padre Cícero, e retornar ao mundo dos vivos. O cangaceiro acredita e encontra seu fim. Sua entrada no Céu é o clímax da Salvação do Parvo na literatura.
Considerações ao Leitor
Fique claro que este texto não reflete necessariamente as ideias do autor sobre a questões teológicas. Não tento justificar as ações pecaminosas e criminosas, tampouco ser juiz, juri e executor; não me cabe.
Deixei o alerta contra as Más Interpretações e os maus usos da manifestação literária sobre a Salvação e o Parvo, assim como de ‘opiniões’ teológicas contidas na Divina Comédia, e na filosofia aristotélica. Contudo, não aprofundei nem teológica, tampouco filosoficamente.
Meus apontamentos são estritamente literários. Olho para a beleza contida nessas obras imortais e deleito-me. Deixo essas análises aos teólogos e filósofos de plantão, ou aqueles preparados para lidar com tais questões.
Se o Parvo está às portas de São Pedro, os inteligentes precisam de poucos passos para o reino de Lúcifer.