Um alerta severo para o crescimento da irrealidade como forma de entretenimento
A atual temporada de animes trouxe duas obras que, pelas similaridades, merecem um comentário conjunto. E sua qualidade é tal que, isoladamente, elas não merecem um comentário. É antes o seu lançamento simultâneo que constitui um sinal de alerta sobre a irrealidade.
Os dois animes possuem nomes grandes, então precisam de um parágrafo só para isso. O primeiro é Ore wa Subete wo “Parry” suru: Gyaku Kanchigai no Sekai Saikyou wa Boukensha ni Naritai. Para simplificar, chamar-se-á Parry, neste texto.
O segundo é Shinmai Ossan Boukensha, Saikyou Party ni Shinu hodo Kitaerarete Muteki ni Naru, para simplificar, chamar-se-á Party. Seus protagonistas são Noor e Rick.
Parry
Em Parry, o personagem conquistou basicamente só uma habilidade de combate: aparar. E só isso já ilustra o problema central da narrativa. Pois se trata de uma mecânica presente em alguns jogos digitais. Onde o jogador pode pressionar um botão no momento correto, bloquear o ataque de um inimigo e abrir a guarda deste para um contra-ataque.

Party
No segundo título, aqui chamado por Party, o protagonista é um aventureiro velho e que passou por dois anos de treinamento com alguns dos aventureiros mais fortes conhecidos. O resultado é que, mesmo para um novato, ele é absurdamente forte.
E um dos motivos pelos quais os nomes dos animes são grandes, é porque são frases para descrever suas premissas.
As duas obras são de tal modo parecidas em sua estrutura, que existe basicamente a mesma hierarquia de aventureiros. E as estruturas narrativas derivam seus conceitos de jogos (principalmente elementos de D&D e outros sistemas D20 ou de MMOs) trazendo o pior dos jogos. Especificamente: excessivo apelo a classes, atributos e uma planificação ridícula.
A Irrealidade
Dito de outro modo, os personagens e suas ações não são críveis. É o mesmo problema que acontece com Yu-Gi-Oh!, onde o protagonista faz jogadas que nenhum jogador pode reproduzir porque são impossíveis de balancear exatamente porque usam cartas básicas para fazer jogadas mais poderosas que algumas das cartas mais fortes.
Contudo, destaca-se.que essa estrutura narrativa serve quando é uma paródia dos elementos de jogos. Porém, a falta de seriedade atrapalha, porque necessita que o público atente a elementos extraordinários como sérios. Por “extraordinários”, não se quer dizer “magia”, refere-se a
- Noor não saber que um minotauro de três metros não é uma vaca. Ele não precisa saber que se trata de um minotauro demoníaco, ele só precisa saber que não é uma vaca. É algo esperado de alguém comum e ele é mostrado como alguém acima do comum.
- Noor não perceber e não ser percebido como alguém claramente acima da média apesar de carregar mais sacos pesados que um trabalhador forte. Ainda que ele não tenha uma habilidade para conjurar um meteoro, ele claramente é competente o suficiente para combates contra muitos dos monstros típicos dos cenários de jogos e narrativas e aventuras.
- Rick não atentar para a própria força avassaladora que demonstra. Não se trata de ele duvidar da própria força após uma vitória, mas após uma consistente demonstração de superioridade de suas habilidades, ele ainda duvidar delas.
- Rick temer desafios claramente fáceis frente ao treinamento pelo qual passou. Não só, as pessoas que propõem os desafios demonstram não perceber que ele não precisa desses desafios e deveria ser encaminhado para outro tipo de orientação.

Comédia
Para comparar o ridículo das representações, basta assistir a algum vídeo de Viva La Dirt League, que parodiam elementos típicos de jogos. A paródia funciona exatamente pela seriedade, onde fica evidente que alguns personagens estão sem expressão facial porque o jogador não está agindo para ter alguma representação.
A comédia funciona porque se precisa conseguir acreditar no ordinário de uma obra extraordinária, como no fato de que personagens inteligentes estranhando muitas das coisas que acontecem em jogos.
A seriedade na comédia
Os mais prático é exemplificar como boas comédias são sérias:
- Chūnibyō Demo Koi ga Shitai!: não há necessidade de acreditar nos devaneios e loucuras, mas que o trauma da perda do pai gerou algum problema psicológico que se manifesta nos devaneios. Ou seja, a criança está tentando se expressar, mas não sabe como e é doloroso para ela mesmo se expressar nos devaneios. Subitamente, uma brincadeira constrangedora fica demasiadamente séria.
- Nisekoi: apesar de ter menos elementos extraordinários, o problema de fazer uma promessa quando criança e, na adolescência, ter que lidar com a resolução da promessa e os sentimentos adolescentes é passível de criar muitas confusões. O conflito é tão sério porque o protagonista não tem memória do que realmente aconteceu e seus sentimentos projetam a memória de que prometeu se casar com a moça por quem se apaixonou. É sério como há drama demais para superar os falsos problemas da adolescência.
- Tonari no Kaibutsu-kun: uma pessoa inteligente pode ter dificuldade de relacionamentos, e alguém que só foque em ter boas notas terá esse problema. Porém, os dois precisam lidar com a solidão de alguma forma e a superação individual não vale sem alguém com quem partilhar a alegria. Ao mesmo tempo, ter alguém com quem partilhar o fardo o torna mais leve, seja o fardo que for.
- Spy X Family: cada um dos três personagens têm algum elemento extraordinário, mas os três têm motivos para querer uma família. Pode-se não acreditar nos elementos extraordinários, mas se acredita num homem capaz de falsificar uma família para evitar que outras pessoas fiquem órfãs como ele; pode-se acreditar numa criança que decide agir numa missão para ter uma família; e é possível acreditar numa moça que cria uma família para não preocupar seu irmão e deixá-lo viver a própria vida . No fundo, os três estão se sacrificando. O protagonista, inclusive, age seriamente pela missão enquanto a filha e a esposa agem seriamente para manter a família. A comicidade está no conflito entre as motivações interiores e as exteriores.
Outros Exemplos de Seriedade na Comédia
Ainda é possível falar de outros exemplos fora do cenário de animes, como Os Irmãos Cara de Pau ou o filme do Pateta (1995).
O primeiro é um filme tão sério que até tanques de guerra são apresentados na perseguição final. É um exagero, mas que demonstra que alguém está seriamente atrás dele (e eis o elemento cômico).
Mas no filme do Pateta, percebe-se como Max toma com muita seriedade estar no show e, ao final, Pateta o ajuda com seriedade e simplicidade (e passa por toda a segurança só por andar confiante). Porém, o melhor de tudo é que a presença dele no show era desnecessária.
Em resumo: a melhor forma de tornar a comédia eficaz é tornar os problemas pequenos para o protagonista, nunca o protagonista alguém inferior a esses problemas. Contudo , o desafio precisa parecer grande ao protagonista e esse é o motivo de haver tantas comédias românticas com adolescentes. Portanto, o problema é pequeno, mas os personagens não estão devidamente maduros.
De Volta à Irrealidade
Trazendo para as obras em questão, se Noor aparecesse simplesmente aparando golpes com uma facilidade inusitada e isso fizesse o treinador dele propor testes ridiculamente difíceis, mas onde sua habilidade é vitoriosa, o efeito cômico funcionaria. No caso de Rick, bastaria fazê-lo tentar se provar fraco frente a alguém que o reconheça como forte e falhar miseravelmente.
Compreensão
Do jeito como estão, as duas obras deixam sua compreensão restrita a conhecimentos prévios que são irrelevantes. Mas não há motivo para alguém não se interessar por elas, na verdade. Pois há em cada uma um conflito interessante a ser retratado.
Noor é um personagem que não tem um talento evidente. Especificamente, ele não fez sua espada pegar fogo espontaneamente durante o treinamento. Porém, no primeiro episódio, sua força é evidente. Apesar da falta de um talento que o destaque, o que estraga a premissa da obra.
Rick é a pessoa que muda de carreira e se prepara para enfrentar os desafios da nova carreira. Como resultado, ele está muito acima dos novatos.
Entretanto , o problema é que sua superioridade é tão evidente, que deveria ser simplesmente colocado na posição que lhe é adequada. Neste caso, sua falta de autoconfiança faria sentido, pois ele está sendo posto numa posição mais elevada do que aquela que esperava.
E, apesar de ambas as obras possuírem conflitos interessantes, estes são preteridos para focar em temáticas exclusivas de jogos digitais (e, no fundo, irrelevantes). Logo, é como se os próprios autores não reconhecessem os personagens que criaram.
Conclusão
O resultado é uma tradição hermética, ou seja, fechada em si mesmo, na qual obras culturais referenciam obras culturais que referenciam obras culturais e nunca se chega à realidade. E a consequência é impedir as pessoas, público e autor, de perceberem a realidade.
A tal ponto a narrativa é fechada, que o sistema de pontuação de poder dos aventureiros é inútil. Portanto, só servindo para referenciar algo que não funciona. E colocar um elemento narrativo inútil não é uma forma de subversão de expectativas, é má escrita.
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