A escravidão não tratou-se d’um fenômeno isolado ou invenção do “homem branco ocidental e malvado”, mas uma instituição existente em todas as épocas e lugares, inclusive de forma brutal na África
Hoje, muitos americanos acreditam erroneamente que os Estados Unidos da América inventaram a escravidão ou que existiu só no contexto do tráfico transatlântico de escravos. E essa visão limitada — frequentemente ecoada em demandas modernas por reparações — pinta as sociedades brancas como as únicas responsáveis pelos grandes horrores da escravidão. No entanto, muito antes dos navios europeus chegarem às costas da África, os africanos já capturavam, possuíam e exploravam escravos em sistemas brutais e generalizados. Para confrontar a verdade completa sobre a escravidão, precisamos reconhecer a cumplicidade africana em sua expansão e persistência. Conquanto a escravidão não era simplesmente imposta aos africanos de fora. Mas também defendida pelas elites africanas, inserida em instituições políticas e sociais e violentamente protegida por governantes que dependiam dela para seu poder.
Escravidão na África Pré-Colonial
Na África pré-colonial, a escravidão não era marginal. Mas central para a estrutura econômica de muitas sociedades. Por exemplo, em Asante os escravos eram a espinha dorsal da produção agrícola. Sendo assim, a partir do século XVIII, aldeias de escravos trabalhavam a terra para alimentar exércitos e a aristocracia. Essas aldeias escravistas localizavam-se longe da capital, Kumasi, e produziam alimentos e as matérias-primas que sustentavam a classe dominante.
O trabalho escravo era utilizado não somente apenas na agricultura, mas também na mineração de ouro e no cultivo de noz-de-cola. Após o fim do tráfico transatlântico de escravos, quando a venda de escravos aos europeus tornou-se difícil, as elites asante simplesmente redirecionaram seus escravos para a produção econômica doméstica. Em vez de comercializá-los no exterior, colocaram-nos para trabalhar no campo.
A escala era significativa. Assim como o Estado redistribuiu esses escravos aos líderes e chefes de linhagem, que usaram-nos para alimentar os seus novos empreendimentos agrícolas. Incluindo as primeiras plantações de cacau, que mais tarde definiriam a economia de exportação de Gana.
Escravidão Comparada
Ao contrário da alegação de que a escravidão africana era mais humana do que sua contraparte atlântica, a realidade era frequentemente brutal. No Califado de Sokoto — uma das maiores sociedades escravistas da África do século XIX — os escravos seriam amarrados ao sol, espancados ou até acorrentados por desobediência. Esperava-se que aqueles que trabalhavam nas plantações alimentassem-se, mas apenas após trabalharem nas terras de seus senhores. Por conseguinte, com frequência eles sobrecarregavam as mulheres com jornadas de trabalho mais longas devido à sua dupla função na agricultura e no trabalho doméstico.
Embora alguns escravos cultivassem sua própria comida ou se casassem, não tratava-se d’um ato de generosidade. Mas uma estratégia pragmática para evitar rebeliões ou fugas, permitindo que os proprietários de escravos evitassem o custo total da manutenção. Sendo assim, os filhos nascidos de escravos permaneciam propriedade do senhor, reforçando o ciclo de escravidão.
Escravos na Corte Asante
Na corte asante, mesmo os escravos palacianos de alta patente nunca eram verdadeiramente livres. Esses escravos de elite podiam supervisionar outros servos ou aconselhar o rei, mas seriam enterrados vivos com seu senhor após sua morte. Isto é, num sinal máximo de seu status desumanizado. Ademais, sua lealdade não traduzia-se em liberdade, só em proximidade com o poder.
Quando as forças coloniais britânicas tentaram abolir a escravidão no século XIX, encontraram forte resistência não dos colonos europeus, mas dos governantes africanos. Em Asante, via-se a abolição da escravidão como ataque direto à estrutura política e econômica do Estado. Considerava a escravidão valiosa demais para abandonarem. Pois os chefes dependiam dos escravos para trabalhar a terra, minerar o ouro, transportar mercadorias e sustentar suas famílias. Portanto, a abolição enfureceu tanto as classes dominantes que, em 1906, escreveram uma carta contundente ao comissário britânico expressando suas queixas:
Todos os nossos tambores, cornetas, espadas, rabos de elefante, e os carregamento de cestos e agricultura são feitos por estes […] Então, como nós, reis e chefes, atenderemos a qualquer chamado do governo em Obuasi ou Kumasi enquanto não temos ninguém para nos carregar, tocar nossos tambores, soprar nossas cornetas, carregar nossas espadas e outras coisas necessárias?
Status Quo da Escravidão em África
A escravidão proporcionava o excedente econômico que permitia aos governantes manter exércitos e redes de clientelismo, e ressentiam-se da diminuição de status que a abolição representava. Portanto, os esforços britânicos para acabar com a escravidão encontraram violenta oposição em toda a Costa do Ouro. Líderes asantes travaram guerras para proteger sua independência política, e parte dessa resistência enraizava-se na recusa em abandonar a economia escravista, sustentátuclo dessa sociedade.
Todavia, mesmo após a abolição formal, grande número de escravos continuou a viver em condições de servidão. A integração numa sociedade livre era frequentemente impossível. Escravos e descendentes permaneceram legal e socialmente desfavorecidos, excluídos com frequência dos plenos direitos de propriedade e herança.
Entre os igbos do sudeste da Nigéria, a escravidão também representava um pilar da economia. Tanto homens quanto mulheres utilizavam mão de obra escrava para construir famílias empreendedoras. Pois os homens adquiriam escravos para cultivar inhame, produzir óleo de palma e transportar mercadorias pelas rotas comerciais. Enquano as mulheres possuíam e administravam grandes grupos de escravos para agricultura, comércio de canoas e vendas no mercado. Em Aboh, registrou-se uma mulher na década de 1840 como proprietária de mais de 200 escravos, cultivando, processando óleo de palma e transportando mercadorias.
Os escravos eram tão importantes para a vida econômica que perdê-los significava perder o próprio fundamento da prosperidade. Quando a emancipação chegou, muitos proprietários de escravos igbos ficaram devastados. Como escreve Ohadike, “quando os escravos iam embora, os proprietários choravam”. Por isso, a abolição deixou as elites e até os indivíduos comuns bastante inseguros quanto às perspectivas econômicas. Conquanto a escravidão erepresentava o motor econômico da sociedade igbo, e a abolição colonial efetivamente destruiu essa classe de empreendedores.
Resistência dos Senhores Igbos
Semelhante à resposta das elites na Costa do Ouro, os proprietários de escravos em Igbolândia resistiram à abolição britânica com violência e estratégias astutas. Por exemplo, em Arochukwu, os líderes locais usavam oráculos para escravizar pessoas sob falsos pretextos. Por vezes alegando o julgamento divino como ferramenta para expandir sua base de escravos. Mas lá os britânicos precisaram enviar forças militares para suprimir esses sistemas. Da mesma forma, em Igbolândia ocidental, a resistência Ekumeku lutou contra o domínio colonial precisamente porque ameaçava as instituições — incluindo a escravidão — sustentáculos da riqueza e status locais por gerações.
Em toda a África, a escravidão era um fato da vida. No Mali e em Songai, os escravos cultivavam os campos e produziam os grãos que alimentavam os exércitos imperiais. Já na África Ocidental muçulmana, enormes plantações de escravos abasteciam os mercados com algodão, índigo e alimentos. A aristocracia Fulbe de Futa Jallon dependia de milhares de escravos para manter suas propriedades funcionando. Em Masina, os governantes expandiram a agricultura escravista aumentando os impostos para a defesa.
Até mesmo as elites religiosas — imãs e sacerdotes — possuíam escravos e os usavam para glorificar suas divindades ou financiar guerras santas. Ou seja, não era isolado. Da costa de Angola às savanas do norte da Nigéria, a escravidão estava em toda parte. Porém, algumas sociedades tinham menos escravos, mas quase todas os tinham. Assim sendo, a ideia de que só reinos centralizados praticavam a escravidão ignora o fato de que mesmo pequenas aldeias nas chamadas sociedades “sem Estado” atacavam vizinhos ou compravam cativos para trabalhar a terra.
Escravidão Africana e Sistema Econômico
Na África, a escravidão não era uma questão moral, mas de sobrevivência, poder e controle. Reis precisavam de escravos para construir exércitos, enquanto comerciantes precisavam para transportar mercadorias. Por conseguinte, agricultores precisavam de escravos para limpar terras. Logo, sem a escravidão, esses sistemas entraram em colapso. A riqueza d’uma pessoa era medida em pessoas e não em terras. Como tal, os escravos eram a moeda do poder.
É por isso que os governantes africanos — seja em Asante, Igbolândia ou Sokoto — lutaram para preservar a instituição. Alguns usaram linguagem espiritual para justificá-la. Conquanto outros usaram costumes legais ou tribunais religiosos. Mas, em sua essência, a escravidão permaneceu um sistema de exploração calculado e egoísta. Mantido pelo poder político, tão brutal e sistemático quanto qualquer coisa nas Américas.
Se quisermos falar honestamente sobre a escravidão e seu legado, precisamos incluir a dimensão africana. Pois a escravidão na África não era passiva ou acidental, mas deliberada. As elites africanas capturaram, venderam e escravizaram seus vizinhos — e defenderam ferozmente o sistema quando os europeus tentaram eliminá-lo. Isso não desculpa os crimes do tráfico transatlântico de escravos ou o racismo que dele desenvolveu-se. Mas a verdade exige contexto. Os brancos não inventaram a escravidão. Tratou-se d’uma instituição humana, praticada em todos os continentes e sociedades, e sustentada na África por séculos pelos próprios africanos.
Se quisermos um futuro enraizado na justiça, devemos construí-lo com base em toda a verdade, não somente nas partes convenientes.
Publicado originalmente em Mises Wire, no Mises Institute, sob o título “African Slavery: The Other Side“. Traduzido por Roberto Lacerda Barricelli.