Muitos conseguem ver o problema de recursos finitos no caso de coisas que são chamadas apostas, mas outros não conseguem ver n’outras situações, chamadas de “investimento”
Quando Rachel e Khun se encontraram, era evidente que eles teriam que lutar. Porém, Rachel era inepta em combate e, sabendo disso, Khun propôs a única forma de combate que consideraria justa para ela ter uma chance de vencer: eles jogariam cara ou coroa. Como Rachel rapidamente percebeu, isso significava que ele acreditava que ela só seria capaz de vencê-lo por pura sorte. E ela também pensava isso e aceitou o “duelo”.
Seria uma rodada e o resultado foi a vitória de Khun. Consternada, Rachel pediu uma segunda rodada, pois Khun jogara a moeda e ela pensava que teria trapaceado, forçando um resultado vitorioso para ele. Como alguém iria trapacear num jogo de cara ou coroa Rachel não sabia dizer. Ou seja, ela não sabia como ele tinha trapaceado, mas tinha certeza que tinha.
Por isso, Rachel pediu para ela jogar a moeda e levou a segunda rodada. Imediatamente, Khun pediu “melhor de três” e, a contragosto, Rachel concordou. E ela perdeu.
Afastando-se da adversária, os companheiros de Khun perguntaram como ele foi tão imprudente de deixar o combate ao destino da sorte. Ele respondeu “eu não deixei o destino à sorte, eu trapaceei na primeira rodada”.
Eles ficaram surpresos mais com a capacidade de o amigo mentir sobre não ter trapaceado e, imediatamente, questionaram se ele tinha trapaceado na terceira rodada também.
“Eu sabia que Rachel pediria para refazer a jogada assim que perdesse” respondeu ele “e tive fé que Deus não daria mais que uma vitória para ela”.
“Então você deixou para a sorte, afinal?”
“Eu não sou capaz de acreditar num Deus que daria mais que uma vitória para ela”.
Para os que se interessarem, trata-se de uma paráfrase de um capítulo do manhwa Tower of God.
Teoria de Martingale
Originalmente, “martingale” se referia a uma de várias estratégias de apostas populares na França do século XVIII. A mais simples delas foi projetada para um jogo em que o apostador ganha sua aposta se uma moeda der cara e perde se a moeda der coroa.
Neste caso, a estratégia era simples e consistia em dobrar a aposta após cada perda, de modo que a primeira vitória recuperasse todas as perdas anteriores, além de obter um lucro igual à aposta original.
O problema é que essa estratégia só funciona, de modo garantido, se o apostador tem recursos infinitos. E, noutro aspecto, há valores mínimos para apostas em vários lugares de apostas que tornam a estratégia inócua. Isso e a redução das chances para bem abaixo dos 50%.
Porém, a estratégia resume bem o descrito no confronto entre Khun e Rachel. Rachel partiu do pressuposto que poderia ter “chances infinitas”. Khun partiu do pressuposto que Rachel só teria uma vitória e precisava garantir que não fosse a primeira.
Não fosse o próprio Khun admitir que trapaceou na primeira rodada, ficaria implícito que ele pediria a melhor de três caso tivesse perdido. Porém, com o devido respeito a Siu (apelido do autor do manhwa Tower of God), em termos narrativos, a construção que ele faz é boa para criar drama.
O mais importante: Khun sabia que tinha recursos finitos para o combate. Ele não fez uma aposta.
O mesmo em outros cenários (investimento)
Se muitos conseguem ver o problema de recursos finitos no caso de coisas que são chamadas apostas, outros não conseguem ver isso noutras situações em que o nome dado é “investimento”. E parte fundamental do livro Antifrágil, de Nassin Taleb, envolve o que se pode chamar de “gestão de risco”.
Tome-se Star Citizen, o jogo com o financiamento coletivo mais caro do mundo (atualmente). O arrecadado pelos desenvolvedores já ultrapassou US$ 800 milhões (o que é ruim de converter para reais porque são mais de 10 anos de financiamento coletivo e o real variou muito neste período).
O detalhe mais relevante é que o título ainda não foi lançado. Ou seja, os jogadores financiam um jogo ainda não lançado. E, se alguns já abandonaram o financiamento, outros entram na estratégia de Martingale: decidem financiar mais um pouco imaginando que irão reaver o “investimento” num jogo ainda melhor.
Talvez aqui ainda não seja o melhor exemplo, mas quem nunca viu um amigo consistentemente gastar dinheiro com um projeto que não dá retornos? Ou consistentemente pedir dinheiro emprestado para projetos diversos que não dão certo?
Não raro, trata-se de uma pessoa que segue algum marketing (caro) e o resultado do “investimento” da pessoa é que outro fica milionário. Inclusive, fica a dica: uma das estratégias básicas de marketing é vender algo como se fosse um investimento, ainda que seja um sapato ou um bombom.
The Witcher 4
Esse alerta é válido para a Tech Demo de The Witcher 4. O objetivo do vídeo, em tese, não é falar do título The Witcher 4, mas usar personagens da franquia para falar do que a Unreal pode fazer em termos de jogos.
Muitos deverão pensar que o vídeo é um trailer de demonstração do jogo, não da Engine em que o jogo está sendo feito. O quanto a empresa não sabe disso? É similar ao que acontece com quem vive caindo em estratégias de marketing.
As pessoas não conseguem imaginar que alguém fará uma demonstração técnica com os personagens de um jogo sem que seja parte do jogo que será lançado. Porém, a empresa é capaz de dizer que fez isso e ainda não acreditarem.
Por isso que os alertas em letras pequenas podem ser escritos com letras grandes e muitas estratégias de marketing continuariam funcionando igualmente. Há uma tendência de as pessoas pensarem que são as “abençoadas”, as “eleitas” e que serão vitoriosas em estratégias de risco. Ou, ao menos, que o custo não será tão grande para elas.
E, aqui, pode-se voltar ao livro Antifrágil: todos possuem alguma fraqueza. A gestão de risco nada mais é que direcionar os riscos para afetarem as coisas que podem ser afetadas (ou seja, aquilo que são as forças).
Recursos Finitos
A analogia com jogos e a cultura gamer é evidentemente estranha a muitos. Porém, será estranha para muitos. Ou seja, é preciso generalizar.
Primeiramente, a premissa para o “dobrar a aposta” nada mais é que uma crença de que o ganho irá suplantar as perdas já obtidas. Porém, ela tende a ser vã. E, destaca-se, trata-se de uma situação diferente de assegurar o investimento colocado em risco por questões imprevistas.
Volte-se aos exemplos citados. A campanha de financiamento coletivo de Star Citizen só extrapola aquilo que outras fazem: atiçar a vaidade dos compradores. A maioria das recompensas para além do produto nada mais são que itens de vaidade. Raros são os casos que ultrapassam isso.
No caso da Tech Demo de The Witcher 4, é evidente que o vídeo é propriamente para desenvolvedores, mas o uso de personagens da franquia faz com que o vídeo atinja também os jogadores. São públicos totalmente diferentes.
Em ambos os casos, há maior ganho em comprar uma (literalmente UMA) ação do Banco do Brasil, pois ela paga dividendos. A pessoa perde menos tempo (ainda mais considerando que não se trate de um desenvolvedor) e gasta dinheiro com algo que deverá 1) retornar o investimento e 2) ao menos, valorizar com a inflação.
Claro que comprar uma ação do Banco do Brasil não fará ninguém se tornar milionário. Porém, é uma estratégia mais acertada para acumular capital que comprar criptomoedas que podem perder todo o valor de mercado (ou ficarem presas numa carteira digital inacessível porque se perdeu a senha).
