À luz da História não existe algo como DNA humano puro, ou “raça pura”, mas uma história de múltiplas miscigenações na formação do mapa genético da humanidade
Especulando sobre as origens dos antigos egípcios — construtores da grande civilização do Egito Antigo — Will Durant retoma hipóteses formuladas por outros autores. Mas também sugere que o homem egípcio do Neolítico, entre 10.000 e 4.000 a.C., resultou da mistura de populações do Norte da África com algum grupo semita ou armenoide migrado à região. Assim, conclui que mesmo nesse período remoto já não existiam raças puras na Terra; um DNA humano puro.
Mistura de Povos
“Ninguém sabe de onde que os primitivos povos egípcios vieram. As melhores autoridades supõem que resultassem d’um cruzamento entre nativos núbios, etíopes e líbios, d’um lado, e imigrantes semitas ou armenóides d’outro. Mesmo naquele tempo não havia DNA humano puro no mundo. Provavelmente os invasores ou imigrantes da Ásia Ocidental trouxeram consigo uma elevada cultura, Sendo assim, pela fusão com o vigoroso tronco local produziram o precipitado étnico que frequentemente preludia o surgimento de uma nova civilização. Lentamente, de 4000 a 3000 a.C., essa mistura se estabilizou e criou o Egito da História.”
Com o avanço recente da genética, especialmente após a decodificação do genoma humano, tornou-se mais fácil demonstrar cientificamente essa percepção antiga de muitos historiadores. Por exemplo, estudos de DNA populacional mostram que povos modernos carregam marcadores genéticos oriundos de regiões geográficas distantes. Pesquisas sugerem que a composição genética de parte da população francesa inclui elementos provenientes do Leste Asiático. Possivelmente remontando a invasões de povos das estepes — como os hunos — durante a Antiguidade tardia. Embora raramente possível traçar linha direta e absoluta entre marcadores e eventos históricos específicos, a evidência geral indica: extremamente raro encontrar um “DNA humano puro”.
Por exemplo, se chamarmos os germânicos de “raça pura” e investigarmos mais a fundo, veremos que o conceito se dissolve. Pois n’algum ponto da história, os chamados germânicos resultaram de cruzamentos com outros povos. Entre eles, cita-se fusão com gauleses e populações indo-europeias da região do Cáucaso (frequentemente referidas como “arianas”), contribuindo a formação dos povos germânicos históricos. Além disso, a história da Europa Central registra contatos, alianças e conflitos com eslavos e magiares, reforçando a ideia de mistura constante.
Fenícios na composição da herança do DNA Humano
Outro caso revelador, noticiado por BBC e Daily Mail, ocorreu com a descoberta, no Norte da África, d’um corpo extremamente bem preservado, identificado como pertencente a antigo fenício. Sabemos pela História que os fenícios tiveram origem na costa do atual Líbano e que, com sua vocação marítima e comercial, espalharam-se por todo o Mediterrâneo. Ou seja, do Norte da África à Península Ibérica, possivelmente alcançando regiões mais distantes, como a Bretanha. Curiosamente, a análise genética revelou que a sequência de DNA desse indivíduo não encontrava-se entre as pessoas testadas no Líbano moderno. Mas, sim, num homem em Portugal, sugerindo descendência fenícia remanescente naquela região.
Esses exemplos apenas confirmam o que historiadores intuíam muito antes de Francis Collins e sua equipe anunciarem o sucesso no sequenciamento do genoma humano. Conquanto desde tempos imemoriais, correntes migratórias moldam a composição do DNA humano de todos os povos. Se, como afirma Will Durant, não havia “raças puras” no alvorecer do Egito, imagine-se após milênios de transmigrações, conquistas, alianças e trocas comerciais.
Pureza Racial Inexiste
Podemos dizer que a ideia de pureza racial não resiste nem à luz da História, nem ao escrutínio da ciência moderna. Os fluxos migratórios, as invasões e interações culturais moldaram populações como rios que, ao encontrarem-se, mesclam suas águas de forma irreversível. Povos que percebem-se homogêneos carregam, em sua herança biológica, capítulos de jornadas distantes e encontros improváveis. O sangue d’um camponês europeu pode guardar ecos genéticos d’um cavaleiro das estepes; o d’um beduíno, vestígios de navegadores egeus. O mapa genético humano assemelha-se menos a linhas puras e mais a tecido bordado com múltiplos fios.
A própria noção de fronteiras fixas — tão cara ao mundo moderno — é recente, quando comparada à mobilidade constante dos grupos humanos no passado. Ademais, povos seguiam os cursos dos rios, fugiam de secas e glaciações, buscavam terras férteis ou respondiam ao chamado do comércio e da aventura. Em cada travessia, transportavam não apenas bens, mas também genes, costumes e ideias, que se fundiam às culturas locais. A arqueogenética confirma, com a precisão do microscópio, o que os antigos cronistas já percebiam: a humanidade é fruto de uma miscigenação contínua e inevitável.
Mobilidade Cultural, Social e…. Racial
Portanto, a História demonstra que nenhum povo permaneceu imóvel em sua terra natal por longos períodos, mesmo quando a percepção popular pinta certas épocas como estáticas. Tomemos a Idade Média: muitas vezes vista como tempo de imobilidade, mas na verdade, período de intenso deslocamento humano.
Afinal, peregrinos cruzavam continentes rumo a santuários; mercadores percorriam rotas que ligavam o norte da Europa ao Mediterrâneo; cavaleiros e exércitos moviam-se em cruzadas. Assim como artesãos e aprendizes migravam em busca de trabalho; famílias abandonavam vilas devastadas por guerras ou más colheitas. Do Mar do Norte a Constantinopla, do Magrebe às estepes, havia vaivém constante que tecia laços, misturava culturas e, inevitavelmente, genes. Logo, desmentindo o mito de povos parados no tempo e no espaço.
Originalmente publicado em História & Tradição.