Nem sempre houve o ‘direito’ à cobrança, aumento e gastança de impostos por um governo central, à revelia dos cidadãos, e o Estado Tributário é ‘invenção’ moderna
A extração de recursos da população doméstica sempre significou uma função crucial e central de todos os Estados, sejam os Estados Unidos da América, a Rússia ou a Argentina. No mundo moderno, todos os Estados tentam, pelo menos, impor uma combinação de impostos especiais. Como impostos de consumo, de renda, de importação ou uma variedade de impostos semelhantes. Conquanto a maioria dos Estados com um nível razoável de capacidade estatal consegue impor e fiscalizar esses impostos com sucesso.
Aos Estados que conseguem impor impostos assim, Joseph Schumpeter chamou de “Estados tributários”. Isto é, nos quais o poder do governo central de impor impostos diretos à vontade desenvolveu-se plenamente.
Tributação Central
Os Estados tributários geralmente caracterizam-se pelo seguinte:
- Centralização: impostos cobrados diretamente pelo governo central. O governo central não depende de governos regionais ou locais para arrecadar impostos ou aplicar as leis tributárias. (Isso não impede que governos regionais ou locais imponham seus próprios impostos);
- Poder unilateral: O governo central pode aumentar impostos unilateralmente. O legislativo ou executivo do governo central tem a prerrogativa de aumentar impostos por conta própria. Ou seja, sem a permissão de qualquer outro soberano dentro do território do estado. N’outras palavras, nenhum governo regional ou local tem o poder de vetar um aumento de impostos ou impedir legalmente sua implementação.
- O governo central decide livremente como gastar as receitas. Uma vez arrecadadas as receitas tributárias, o governo central as aplica da maneira que o poder legislativo do estado central preferir.
- Impostos não são taxas ou um pagamento por um serviço. A rigor, taxa é pagamento destinado a financiar um serviço específico. Logo, somente aqueles que se “beneficiam” do serviço pagam a taxa. Potém, os “benefícios” tributários não vinculam-se a qualquer serviço específico. Por isso, os estados tributados não são legalmente obrigados a qualquer tipo de obrigação recíproca de gastar as receitas tributárias de forma a beneficiar aqueles que pagam o imposto.
Quase todos os habitantes dos mundos “desenvolvidos” e de renda média hoje estão familiarizados com esse tipo de tributação. Essa tem sido a realidade moderna dos Estados que cobram impostos há mais de um século.
Mas nem sempre foi assim. No Ocidente, os Estados tributários são instituições relativamente modernas e evoluíram a partir de governos civis não estatais anteriores, que não eram financiados principalmente por impostos.
O Estado de Domínio versus o Estado Fiscal
O economista político Joseph Schumpeter desenvolveu e popularizou a ideia do “Estado tributário” com sua influente palestra de 1918 “A Crise do Estado Tributário“. Na palestra, Schumpeter fornece uma breve explicação do que precedeu o Estado tributário. Pois era o “Estado de domínio” – embora Schumpeter aoarentemente não usou a frase. Num Estado de domínio, esperava-se que o príncipe usasse seus próprios fundos. Isto é, coletados por meio de aluguéis e taxas sobre a propriedade pessoal do príncipe. Com estes financiaria os próprios atos de governança.
Embora os impostos existissem, considerava-se a tributação uma medida extraordinária e temporária, reservada para emergências infrequentes. Ou, como disse o historiador econômico Jacob Viner, não considerava-se a tributação neste período um “método rotineiro, normal [ou] respeitável de prover as necessidades financeiras do governo”. Por conseguinte, os príncipes que buscavam arrecadar receita por meio de impostos ou aumentos de impostos enfrentavam grandes impedimentos institucionais, ideológicos e políticos num grau desconhecido na maioria dos estados modernos.
No entanto, com a ascensão do Estado no início da era moderna, a tributação tornou-se uma prática comum. Sendo assim, tanto o Estado quanto a tributação cresceram a partir de origens não estatais anteriores. “É bem sabido que o Estado tributário moderno não tem raízes no Estado tributário da antiguidade”, escreve Schumpeter. Também atribuindo as origens do Estado tributário à consolidação do poder sob “os príncipes dos séculos XIV ao XVI”.
Então, o que veio antes desse período? Como que os governantes políticos financiavam-se antes do Estado tributário? Extremamente difícil aos leitores modernos, completamente inculcados pela ideia do Estado como entidade corporativa soberana e unificada, detendo monopólio da coerção legítima num território.
Período Anterior ao Estado Tributário
No entanto, Schumpeter tenta explicar e observa que, antes do Estado e do poder de tributar à vontade, “o príncipe não olhava para seu território como proprietário moderno para seu gado. Tudo isso veio depois”.
Schumpeter explica que, no período medieval, anterior ao Estado tributário, não havia o conceito de “bem comum” como o concebemos hoje. Além disso, o príncipe não exercia “poder social” de forma que permitisse-lhe reivindicar o provedor ou árbitro de qualquer tipo de benefício “público”. Havia somente os domínios do príncipe, sobre os quais ele exercia direitos de propriedade. Mas essa “soberania” era meramente a d’um proprietário privado.
O príncipe podia reivindicar a governança d’uma determinada população, mas enfrentava forte oposição da nobreza, das cidades e até do campesinato. Todos os quais exerciam suas próprias formas de soberania e direitos de propriedade. Os “poderes” d’um príncipe limitavam-se “a soma de diversos direitos” decorrentes dos bens pessoais, distribuídos por diversas propriedades. Não havia “público” que pudesse tributar em benefício d’um bem comum imaginário, pois não havia o que chamaríamos de “comunidade” ou Estado. Certamente não havia “Estado-nação” como o concebemos hoje.
Consequentemente, Schumpeter observa que um príncipe recorreria às próprias propriedades para obter recursos:
“Em relação à economia do príncipe, concluía-se que ele arcaria com todas as despesas de qualquer política de sua responsabilidade privada e não do Estado. Por exemplo, ele próprio arcaria com os custos d’uma guerra contra “seus” inimigos. A menos que tivesse direito às contribuições necessárias em virtude de títulos específicos, como a obrigação dos vassalos de prestar serviço militar. … Nem os meios à disposição do príncipe para esse fim, nem sua soberania derivavam de qualquer poder estatal centralizado”.
Fontes de Receita dos Príncipes
Quaisquer que fossem as reivindicações do príncipe sobre o direito de convocar para o serviço militar ou de participar da produção agrícola, devia-se a contratos e juramentos legais específicos. Então, quais as fontes de receita que um príncipe podia cultivar? Schumpeter as lista:
“Mais importantes eram as receitas de suas próprias terras, isto é, as taxas de seus súditos, os camponeses-servos, dos quais ele era proprietário. Desde o século XIII, essas taxas eram pagas principalmente em dinheiro. Até os séculos XVI e XVII, as receitas consideravam-se a base da economia principesca… Além disso, havia diversos direitos feudais, como a casa da moeda, o mercado, a alfândega, a mineração ou as insígnias de proteção aos judeus e todo o resto. E, finalmente, receitas daqueles poderes que ele tinha como dispensador de justiça ou como senhor de cidades e bailiwicks. Além disso, havia presentes tradicionais de vassalos, as contribuições altamente controversas da igreja, mas nenhum direito geral a “impostos”.
N’alguns casos, as cidades estavam sujeitas a impostos. Mas, como observa Schumpeter, “Além disso, nem o homem livre nem mesmo o nobre dependente pagava impostos, em regra”.
Todavia, se um príncipe tentasse aumentar os impostos, frequentemente encontrava forte resistência, pois rejeitava-se amplamente a própria ideia de um direito legal geral à tributação. Mas pelos príncipes que buscavam tributar — ou seja, os “estados” da nobreza, da Igreja e dos conselhos municipais. Assim, impedidos de aumentar os impostos para financiar novos projetos, os príncipes viam-se forçados a tomar empréstimos. Mas, uma vez que a dívida tornou-se incapacitante, a tributação voltou a ser o recurso assumido. Schumpeter continua:
“O príncipe fez o que pôde: endividou-se. Quando ele não conseguiu mais de tomar emprestado, recorreu à mendicância junto às propriedades. Reconheceu que não tinha o direito de exigir, declarou que a adesão ao seu pedido não prejudicaria os direitos das propriedades, prometeu nunca mais mendigar”…
Inimigos Reais e Imaginários
Os príncipes também beneficiaram-se da presença de ameaças militares — reais e imaginárias — em terras vizinhas. Sendo o atalho definitivo para a criação de novos Estados centralizados. A tributação gradualmente tornou-se permanente e insidiosa em busca do que hoje chamamos de “segurança nacional”:
“O príncipe apontou para sua insolvência e sugeriu que questões como as guerras turcas não eram meramente um assunto pessoal, mas “exigência comum”. Os estados admitiram isso. No momento em que o fizeram, reconheceu-se uma situação que certamente eliminaria todas as garantias em papel contra cobranças fiscais”.
No entanto, mesmo nessa época, os príncipes ainda viam-se forçados, na maioria das circunstâncias, a recorrer às próprias propriedades para financiar os próprios planos. Contudo, com o tempo, isso mudou. “A princípio, a concessão de impostos não implicava de forma alguma uma taxa tributária geral”, observa Schumpeter. Em vez disso, a concessão de impostos era válida “apenas para os estados que a concediam e talvez para seus próprios vassalos… [A] princípio, somente os que votram pela concessão de impostos comprometiam-se. Enquanto aquele que montou em seu cavalo antes da concessão, e partiu, não precisava pagar”.
Os contribuintes também não permitiram simplesmente que o príncipe gastasse essas receitas como bem entendesse, e Schumpeter acrescenta que
“Os estados não confiavam em seu príncipe. Em geral, os fundos arrecadados eram canalizados para o fim a que destinavam-se por meio de seus próprios agentes. Ademais, sempre, exceto em casos desagradáveis de difícil arrecadação, os estados opunham-se à intervenção do príncipe quanto à forma como arrecadariam as quantias votadas”.
Nem é preciso dizer que isso contrasta muito com nossa ideia moderna de tributação. Na qual uma simples votação entre os membros d’uma assembleia legislativa nacional de alguma forma garante o “consentimento” entre todos os potenciais contribuintes d’um estado. Mas com o partido no poder então livre para gastar esses fundos como quiser.
Estado Tributário moderno versus taxas e contribuições medievais
Entretanto, à medida que a “comunidade política medieval” deu lugar ao estado moderno, o estado tributário formou-se. E como Schumpeter conclui, “a responsabilidade tributária com base na decisão da maioria, ainda mais a responsabilidade tributária geral e uma distribuição legalmente controlada da carga tributária entre senhores e vassalos — tudo isso aconteceu, mas muito lentamente”.
O longo tempo necessário para estabelecer um “direito” de tributação ilustra como os impostos não eram simplesmente um novo nome para as taxas, aluguéis e pedágios sob os arranjos medievais. Havia diferença qualitativa reconhecida entre impostos e receitas coletadas sob juramentos feudais. Afinal, as taxas e aluguéis pagos pelo campesinato e vassalos frequentemente baseavam-se em contratos centenários – embora geralmente não escritos – nos quais o senhor era obrigado a fornecer serviços específicos em troca das receitas pagas.
Os serviços incluíam principalmente a defesa militar contra invasores e criminosos. Mas também arbitragem e defesa legais, e manter estradas e vias navegáveis desobstruídas. Ou seja, as receitas eram vinculadas a serviços específicos, e esperava-se que gastas naqueles serviços considerados benéficos àqueles que pagavam.
Mais importante ainda, esses acordos eram recíprocos por natureza e não concediam ao senhor o poder de aumentar unilateralmente o tamanho das taxas, tarifas ou aluguéis. Mesmo nos casos nos quais o pagamento de aluguéis e taxas era de fato obrigatório, os juramentos, direitos, acordos e condições variavam de lugar para lugar dentro dos domínios d’um príncipe. Isso constituía enorme e complexa colcha de retalhos. Ao contrário d’um estado tributário, no qual há impostos uniformes para uma população de cidadãos “iguais”, a ausência de uniformidade entre os domínios pré-estatais impunha custos de transação consideráveis aos príncipes. O que gerava inúmeras dificuldades para impor demandas crescentes por receita em massa.
Diferença Quantitativa entre Estados Feudais e Estado Tributário
Havia também diferença quantitativa entre os impostos e o antigo sistema de taxas e contribuições. Schumpeter enfatiza que as receitas não tributárias eram notavelmente pequenas na Europa Ocidental, e ilustra comparando as receitas dos príncipes ocidentais — dependentes principalmente de receitas não tributárias — com as infladas de impostos do regime turco. Enquanto o regime turco podia enviar exércitos financiados por impostos ao campo de batalha com relativa facilidade fiscal, os príncipes do Ocidente conseguiam arrecadar apenas pequenas frações das somas turcas. Assim, os príncipes ocidentais que esperavam participar de campanhas no leste dependiam do pagamento único de impostos de nobres resistentes e burgueses citadinos. considerando a tributação como último recurso absoluto — e vergonhoso, aliás.
Porém, no final, as forças a favor d’um “direito” geral à tributação por parte dos príncipes — posteriormente transferido para regimes democráticos — venceram. A maioria dos Estados modernos está hoje plenamente desenvolvida, no sentido de que atende a todos os requisitos do Estado tributário, conforme listados acima. Pois os Estados arrecadam fundos por conta própria, e aplicam-nos unilateralmente, universalmente, sem medo de veto, e com direito presumido de gastar livremente. Ou seja, como o governo central considerar adequado.
O aumento da tributação estatal permitiu que os príncipes recém-empossados eliminassem as antigas propriedades medievais, a grande nobreza soberana descentralizada e os inúmeros obstáculos à tributação. Assim surgidos dos escombros do Império Romano no Ocidente. Naturalmente, essa dádiva para as classes dominantes dos estados permaneceu no centro da construção do Estado Tributário, desde então, e assim Schumpeter conclui:
“Os impostos não somente ajudaram a criar o Estado. Eles ajudaram a formá-lo. … Com a conta de impostos em mãos, o Estado Tributário penetrou nas economias privadas e conquistou um domínio crescente sobre elas. O imposto traz dinheiro e espírito calculista para recantos onde ainda não habitam, tornando-se assim um fator formativo no próprio organismo que o desenvolveu”.
Publicado originalmente no Mises Wire, do Mises Institute, intitulado “Schumpeter Explains the Origins of the Modern Tax State“. Traduzido por Roberto Lacerda Barricelli.