Quando a Liberdade de Expressão não existe mais

Não é um crime, mas consta em seus Antecedentes Criminais… O fim da Liberdade de Expressão na Grã-Bretanha?

A Liberdade de Expressão está ameaçada na Grã-Bretanha. Autoridades prendem e indiciam indivíduos por publicações em redes sociais. Conceitos de “comunicação maliciosa” (equivalente no Brasil à fraude de informação ou propaganda enganosa, quando há intenção de induzir os outros ao erro e causar danos, nota do editor) e “ordem pública” (em legislação elaborada pra lidar com distúrbios civis) foram interpretados amplamente pela polícia. E a Lei de Comunicações permite acusar por publicar material “gravemente ofensivo”. Porém, depende muito da opinião de quem vê. Sendo assim, resultou em processos por comentários que devem ser permitidos numa sociedade que acredita na Liberdade de Expressão. Independente se são comentários ofensivos ou repugnantes.

Antecedentes Criminais Secretos

Porém, mais perturbador e traiçoeiro do que acusações criminais por desabafar no Facebook, é descobrir que a polícia mantêm antecedentes criminais secretos sobre os cidadãos. Ou seja, eles sequer sabem. Fazem isso sob o conceito de “incidente de ódio não criminoso”. Categoria criada em 2014, pelo College of Policing.

Soa distópica a frase incidente de ódio não criminoso vinda da polícia. Por que os policiais estão envolvidos, se não é crime? E quem define o que é “incidente de ódio”? É assustador, mas podem te denunciar à polícia com base numa interpretação totalmente subjetiva de algo que você pode ou não ter feito (“incidente de ódio”. E manterão Antecedentes Criminais secretos sobre você.

A orientação do College of Policing (já revisada) recomendava o registro de todas as denúncias, mesmo quando não houve crime. E “independentemente de [o denunciante] ser ou não a vítima, e independentemente de haver ou não qualquer evidência que identifique o elemento de ódio”. Captou a mensagem? Qualquer pessoa pode denunciar qualquer coisa que aconteça a outra pessoa, sem nenhuma evidência, e registrarão contra o suposto autor. Ou seja, se você fosse o alvo da denúncia, nem seria notificado e poderia descobrir isso anos depois, ao fazer uma verificação de antecedentes para emprego.

Princípios do Direito e Violações da Liberdade de Expressão

Isso contraria o common law (o direito britânico, equivalente a “direito consuetudinário”, nota do editor) do direito de confrontar o acusador, e viola o direito ao devido processo legal, quando comparado às armas legais do Estado. O leitores já perceberam que esse sistema permite muita confusão. Um homem recebeu um disco por assobiar a música tema do desenho animado infantil Bob, o Construtor. Outro membro público relatou que um pão de hambúrguer caído era um sinal de ódio racial. A lista de denúncias é ao mesmo tempo ridícula e assustadora em seu alcance. No entanto, uma investigação do jornal Telegraph revelou que registraram mais de 120.000 denúncias desse tupo, entre 2014 e 2019.

Usam as denúncias do NCHI taticamente como forma de assédio, dada a ausência de provas que as corrobore. Contatei uma vítima, a advogada Sarah Phillimore, que ficou em apuros com a polícia local. Pois mantinham registro com base em comunicações maliciosas. Entretanto, ela soube porque o denunciante a informou. Ela respondeu às minhas perguntas por e-mail.

Respostas de Sarah Phillimore

Como você descobriu que havia sido denunciado por um incidente “não criminal”?

Por volta de junho de 2020, o denunciante se gabou nas redes sociais. Disse que eu tinha um “histórico de ódio pela vida”. Se ele/ela não tivesse feito isso, eu nunca saberia. Pois a polícia não me contou. Depois de ler essas declarações, fiz uma Solicitação de Acesso aos Dados de Wiltshire, para ver o que registraram. Tive três NCHI’s registrados contra mim, todos sem sentido.

Quanto tempo levou para você obter uma resolução contra a polícia?

Cerca de 18 meses. Eles se recusaram a remover as gravações, apesar de serem tão ridículas, então iniciei um processo de revisão judicial contra a Polícia de Wiltshire e o College of Policing. Uma delas era uma foto do meu cachorro com a legenda “meu cachorro me chamaria de nazista por queijo”. Registraram isso sob o título “Ódio contra indivíduos transgêneros”. Após a vitória de Harry Miller no Tribunal de Apelação em dezembro de 2021, finalmente concordaram em fazer um acordo e remover os registros. Nunca julgaram o meu pedido, mas ainda assim custou cerca de £50 mil, que financiei coletivamente. Você encontrará a lista completa de tweets para o primeiro NCHI no site Fair Cop, clicando no meu estudo de caso.

O que você recomenda para outras pessoas que talvez estejam nessa situação façam?

Você não será informado de que há um NCHI contra você. Sempre recomendo que as pessoas façam uma Solicitação de Acesso aos Dados da força policial local, para ver o que registraram sobre elas. Se houver registros contrários ao Código de Prática Civil em relação ao NCHI, aconselho fazer uma queixa formal. No entanto, se a polícia não as remover, sua única opção é a revisão judicial. Porém, pode ser muito cara. Consegui uma ordem de limitação de custos em meu requerimento, limitando minha responsabilidade em relação aos custos caso eu perdesse. Mas ainda é preciso encontrar dinheiro para pagar advogados. Não acho que JR seja algo que possa ser facilmente feito por um advogado não especialista.

Fair Cop e a Luta pela Liberdade de Expressão

O ex-policial Harry Miller criou a organização Fair Cop, que trabalhou com Sarah Phillimore, para contestar esses casos e combater os excessos policiais. O próprio Miller entrou com uma ação contra o College of Policing e a venceu. Denunciaram Miller por publicar um limerique (poema curto e engraçado, nota do editor) online. A Fair Cop já processou diversas forças policiais por sua forma de lidar com a liberdade de expressão e as liberdades, e é um dos vários grupos reagindo.

Free Speech Union também fornece apoio jurídico aos seus membros, que lutam por seu direito à liberdade de expressão. Mas não são necessárias múltiplas vitórias judiciais para que o governo considere esse sistema destrutivo para os afetados e corrosivo para a opinião pública sobre a polícia. Todavia, não foram necessárias múltiplas vitórias judiciais para o governo ver como esse sistema é destrutivo para as vítimas e corrói a opinião pública sobre as forças policiais.

Reação do Governo

Emitiram novas diretrizes em 2023, definindo o limite para tais denúncias às situações com um “risco real” de dano significativo ou futura infração criminal. Mas são avaliações subjetivas, e as forças policiais ainda parecem comprometidas em registrar NCHIs. Nos doze meses até maio de 2025, uma força policial, North Yorkshire, registrou 216.

Políticos tanto do Partido Trabalhista como do Conservador manifestaram-se e disseram que querem acabar com os relatórios do NCHI. Porém, nada fizeram até agora. As forças policiais precisam parar de se concentrar em crimes de pensamento e lidar com crimes reais.

Tradução de Roberto Lacerda Barricelli da matéria “When Speech Isn’t Free“. Traduzimos alguns termos conforme a equivalência na realidade brasileira, para preservar o sentido dado pela autora; por exemplo: Free Speech | Liberdade de Expressão e Records | Antecedentes Criminais.



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