Essomericq, um Nobre Guarani na França, pode ser uma farsa?

Existiu um guarani chamado Arosca, rebatizado Essomericq quando aporta na França, em 1505? A propósito, existiu um francês chamado Binot Paulmier de Gonneville? Supostamente, o navegador que esteve na ilha que muito depois seria batizada São Francisco do Sul.

Bem, a Europa do século XIX era a terra da imaginação fértil, da literatura criativa e, não raras vezes, do engodo e da picaretagem. A história de Gonneville e Essomericq, o guarani que se casa, tem uma penca de filhos, ganha título de barão da monarquia francesa, surgiu no século XIX, quando se encontrou um documento a contando.

Antes, já Voltaire, exímio criador de fábulas, dizia ser toda filosofia um nada diante da Revelação. Não sejamos tão céticos. A história é factível. Documentadamente, mais de mil nativos das Américas foram desembarcados na Europa no século XVI. Arosca, ou melhor, Essomericq, seria apenas o mais afortunado deles. Prefiro a história dele à do Bacharel de Cananeia, conto guarani de evocação portuguesa.

Se for mentira, aprendemos algo sobre os contextos. Então, por que não um título bombástico: Um Nobre Guarani na França? Qualquer sociedade, em qualquer tempo, é uma sociedade do espetáculo. A vida comum é um tédio só.

O mito de Essomericq na Academia brasileira

No Brasil, não encontrei uma única palavra crítica a “Vinte luas”, livro em que a doutora em Letras da USP, Leyla Perrone-Moises, afiança ser a história de Gonneville e de seu guarani de estimação, Essomericq, verdade verdadeira. Na França, houve contestações, rechaçadas por “autoridades” de certa Sociedade de História da Normandia, região do suposto navegador Gonneville. Mexa com um memorialista de aldeia e desejará não ter polemizado. Que importa?

Leila é do partido “do bem”, tão majoritário em nossa academia. Gente assim é inatacada, ponto. São Francisco do Sul, terra “natal” do guarani Essomericq, comemora a efeméride, tal com Honfleur, terra natal de Gonneville. Para que meter a colher em festas populares?

Lá vem os ingleses…

Os ingleses, implicando como sempre com o cheiro de alho vindo da outra margem do Canal da Mancha, ridicularizam a história, mais cheia de furos que o suposto navio de Gonneville, o “Esperança” (que conveniente).

Não quero dizer que indígenas do território que viria a ser o Brasil não foram à Europa. A tupi Catarina Paraguaçu comprovadamente o foi. E, mais impressionante, voltou e se tornou rica proprietária de vasto lote urbano (correspondente à área mais nobre de Salvador atual). Também não digo que franceses não estiveram no Brasil no início do século XVI. Efetivamente estiveram. Há provas diretas e mais ainda as há indiretas desses feitos (a França Antártica e a França Equinocional são posteriores).

Mas a história de Gonneville-Essomericq me cheira demais a fantasia. A de Cabeza de Vaca também. Mas há uma diferença: A historicidade da pessoa Álvar Núñez Cabeza de Vaca e de seus fantásticos feitos é comprovada por um conjunto de fontes indesmentível em seu conjunto. Ademais, foi governador do Paraguai, o estabelecimento espanhol mais bem organizado do século XVI nas terras baixas da América do Sul.

Assim, prefiro estudar os guaranis de Cabeza de Vaca, as complexas relações entre o conquistador, o governador e esse povo de cultura tão rica, presente em grande medida também no Brasil. Quanto a Gonneville-Essomericq, sou admirador da literatura francesa, sobretudo a de ficção. Apenas tenho pouca paciência para as versões brasileiras politicamente corretas de histórias originais francesas.

Os lados do embate

De um lado temos uma defesa apaixonada da autenticidade da viagem de Binot Paulmier de Gonneville por historiadores franceses, tendo em Christophe Maneuvrier, da Universidade de Caen, na Normandia, um denominador comum. Isso para além da tradição de exaltação do feito, iniciada no século XVIII em tons nacionalistas. É ato de lesa-pátria um francês contestar a história. Maneuvrier teve sua defesa de Gonneville-Essomericq aceita por revista da Universidade de Coimbra, ato isolado de atenção da historiografia portuguesa ao caso.

Layla Perrone-Moisés é uma senhora simpática. E é da USP. Ela comprou o pacote nacionalista francês todo e, sem surpresas, foi acolhida pela Companhia das Letras, selo clássico da elite bem-pensante brasileira, pelo menos de sua ala majoritária.

De outro lado, temos duas vozes aparentemente isoladas: Jacques Lévêque de Pontharouart, historiógrafo francês, e Margaret Sankey, voz acadêmica da Universidade de Sydney, Austrália. Eles apontam fraude na construção do mito Gonneville-Essomericq. No Brasil, tiveram correspondente em Fernando Lourenço Fernandes. Historiador de prestígio, com um pendor para teses polêmicas sobre os primeiros anos do Brasil.

A despreocupação da historiografia com Essomericq

Jacques-Roger Vauclin é historiador francês especialista em navegações dos séculos XV e XVI. Escreve um bom relato sobre as posições dos contra e a favor da historicidade da famosa viagem, mas não toma partido. Talvez para não ser apedrejado em seu próprio país, faz questão de ressaltar que a história é plausível. O que não quer dizer seja provável. Habilmente, ele desvia desse juízo.

Restam os sentimentos regionalistas e as celebrações de Santa Catarina e da Normandia, análogas. Não estou nem aí para os normandos; que agiram no mais das vezes como piratas, causando não pequenos prejuízos a Portugal. Por Santa Catarina tenho estima porém. Não gostaria de ser visto como persona non grata por lá.

Cabe um último registro: a historiografia em geral, francesa, brasileira, portuguesa ou outra, dá muito pouca atenção ao episódio. Para além de um vespeiro que não pode ser de todo confirmado ou desmentido, pois ausência de provas não é prova de ausência de fatos, há a questão da irrelevância. E daí se um normando esteve na ilha que mais tarde se chamaria São Francisco do Sul? E daí se um guarani teve descendência aristocrática na França? Não passará de curiosidade.

Não interfere nas análises importantes sobre o contexto das navegações do século XVI e da relação entre europeus e tupis e guaranis, temas riquíssimos e fundamentais para a compreensão da história enquanto processo.

A indiazinha da saia de Frozen

“Não quero que o livro tenha um tom folclórico, exótico, mas preciso incluir detalhes que façam o leitor vibrar”, diz, em um café do 17º distrito de Paris, perto de sua casa. “Meu filho de sete anos ficou surpreso, por exemplo, quando contei que tinha visto em São Francisco do Sul uma indiazinha com uma saia da princesa de ‘Frozen’.”.

São palavras de Dorothée de Linares, após ser recebida com pompa em São Francisco do Sul, em 2018. Ela alega ser descendente do suposto Essomericq, o guarani que teria sido levado à França em 1505, lá se casado e dado origem a uma nobre descendência francesa.

História, definitivamente, não é sobre o passado. É sobre o presente. É que o presente quer que seja. Vai dar na indiazinha de saia de princesa de Frozen de São Francisco do Sul. Não é encantador?


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By Aurélio Schommer

Escritor, historiador e professor. Membro Titular no Conselho Curador na empresa Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Membro no Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Produtor de conteúdo no Canal Enciclopédia de História (Youtube) - https://www.youtube.com/c/EnciclopédiadeHistória

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