As Américas são um continente violento em termos históricos? Ou a Leyenda Negra é invenção de outros povos colonizadores?
Se, na atualidade, Europa e Extremo Oriente apresentam menor mortalidade por violência em relação às Américas, o quadro histórico é o oposto da Leyenda Negra. Ninguém se matou mais, entre eles mesmos, seja em números absolutos ou relativos, que europeus e asiáticos do leste. A história das guerras civis na China é uma coleção de horrores, de massacres e beligerância colossais. Homens se matavam na Europa na Idade Média, grupo contra grupo, por mero desfastio. Pois não se conseguia muitas vezes apontar uma causa válida outra.
Nos séculos XIX e XX, as guerras passaram a custar vidas na casa das dezenas de milhões cada uma delas. E sem efeitos demográficos negativos, pois quase todos os mortos eram homens. Para fins reprodutivos, homens sempre os há em excesso. No leste europeu, como bem sabemos, o fenômeno é atualíssimo, está no presente, repetição de um passado particularmente sanguinário.
Leyenda Negra
Jared Diamond vendeu milhões de exemplares de seu muito bem-escrito “Armas, Germes e Aço”, que começa com a vitória de Pizarro sobre o inca em Cajamarca, confronto com pouquíssimos mortos se prestarmos atenção aos detalhes da narrativa. A Leyenda Negra a pesar sobre os espanhóis em relação à América, obra de ingleses e holandeses muito interessados (no quê? pergunta que não se faz), é anterior. Diamond apenas a atualiza.
De exemplar neste lado do Atlântico, a Guerra dos Castores, na região dos Grandes Lagos, em que tribos norte-americanas se empenharam em exterminar umas às outras, estimuladas de um lado pelos franceses do Quebec, de outro por holandeses e ingleses instalados mais ao sul.
Os tupis do Brasil eram mais espertos. Mesmo quando se enfrentavam aliados a franceses ou holandeses contra tupis aliados dos portugueses, buscavam limitar suas perdas, como já o faziam antes. Mas numa violência simbólica e ritual, tendente a preservar a maior parte das vidas dos inimigos.
Guerra Guaranítica
Espanhóis ou portugueses nunca demonstraram interesse em matar nativos americanos. Quando nada, para preservarem a si próprios, pois enfrentar tupis ou guaicurus em meio às florestas das terras baixas da América do Sul era pedir para morrer. As chamadas “guerras justas” só podiam ser vencidas a partir da adesão de outro grupo nativo, era tão simples quanto isso.
Porém, num dos poucos casos de conflito aberto, militar, de europeus contra ameríndios, a chamada “Guerra Guaranítica”, fez a fama de Sepé Tiaraju. Mas vale lembrar que os guaranis eram aculturados todos. Pois foram armados pelos jesuítas, e os exércitos espanhol e português eram mais formados por mestiços platenses e brasileiros respectivamente.
A vitória ibérica, digamos assim, veio a custo e muito deveu ao gênio militar de nosso Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, que soube estabelecer laços de confiança com guaranis dissidentes. Contudo, século depois, em região próxima, a Guerra do Paraguai, entre sociedades de matriz europeia, se mostraria incomparavelmente mais cruel e mortífera do que a Guaranítica.
Paz e Guerra
No Brasil, quem quis paz, paz teve, ainda que se submetesse eventualmente (muito eventualmente e no início aliás) a formas de vassalagem. Quem quis guerra, como os guaicurus e os tarairiús de Janduí e Canindé, nunca foi vencido.
Era preferível fazer acordos com gente como o cacique Doble, kaingang que nunca cumpria suas promessas, pois sabia que os brancos fingiriam não ver suas traições, a enfrentá-lo em seu próprio território. Os ditos botocudos, jês em sua maioria, mataram mais brasileiros do que morreram. Nem por isso deixavam de receber generosas ofertas de paz dos governos imperial e republicano sucessivamente.
Germes e Violência
A crônica do extermínio indígena percorre boa trilha quando fala em etnocídio. De fato, o contato com a cultura europeia pôs abaixo o frágil edifício do folclore indígena. Nisso, a culpa foi menos do europeu do que da adesão dos nativos, interessados por uma cultura de resultados práticos mais vistosos. Também não deixa de ter razão quando narra o estrago dos germes trazidos pelos europeus, todos os mortais de origem asiática ou africana a propósito. Mas eles, os patógenos, chegariam de qualquer maneira, em algum momento, e as populações se recuperariam, como se recuperaram e, antes, se recuperaram eurasianos e africanos de seus muitos surtos de doenças infecciosas.
Dos patógenos que impactaram a demografia americana nativa, nenhum tinha origem europeia. Provinham da Ásia ou da África. As variedades africanas se mostravam especialmente mortíferas, de tal modo que onde a penetração de africanos escravizados foi maior, a sobrevivência genética dos ameríndios é menor. Sendo assim, são casos típicos o México e do Peru (poucos africanos, genética majoritariamente ameríndia no século XXI), de um lado, do Brasil (o contrário), de outro.
Desconhecida na Europa até o século XVIII, a cólera chegou às Américas diretamente da Ásia. Somente depois infectaria os europeus do Velho Mundo.
Falar, porém, em extermínio pela violência é ignorar a normalidade da violência em todas as partes nos séculos XV, XVI e além. Todas as partes, também nas Américas pré e pós-contato entre os próprios nativos. É desonesto usar como referência as crônicas antigas, pois evidentemente exageravam o número de combatentes, não poucas vezes os multiplicando por 10, 20 ou 50, por razões óbvias. Assim como é desonesto aderir acriticamente aos construtores da Leyenda Negra, entre eles os jesuítas espanhóis e portugueses.
Quando Capistrano de Abreu afirmou que os bandeirantes matavam índios por “mero desfastio destruidor”, estava fazendo política, não historiografia. Repetir isso hoje passa um pouco de mera política. Cheira a mentir de caso pensado.
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