Galinheiro e a Raposa: Limites da Liberdade em Rousseau

As consequências da Teoria da Vontade Geral e do Contrato Social em Jean-Jacques Rousseau e os limites inescapáveis que impõe à Liberdade

Jean-Jacques Rousseau é frequentemente exaltado como o profeta da liberdade moderna. Todavia, seu conceito de “vontade geral” — pedra angular de sua filosofia política — revela-se não só vago como perigosamente impraticável. Mas à luz de um exame mais criterioso e à partir de um ponto de vista conservador/tradicional. Por exemplo, como nos apresenta Frederick Copleston. Pois Rousseau afirma que o contrato social autêntico consiste na unificação de todos os indivíduos sob a direção suprema da vontade geral. Ou seja, de modo que cada membro se torne parte indivisível de um todo moral e coletivo.

O Estado, assim constituído, é soberano apenas enquanto expressão desse novo ser moral — o povo em sua totalidade. Entretanto, cujo “querer” comum é identificado como justo e infalível por natureza. No entanto, Rousseau alerta: o que deve prevalecer não é a “vontade de todos”, soma de desejos particulares e interesses egoístas. Mas, sim, a “vontade geral”, orientada exclusivamente para o bem comum. A distinção é fundamental. Todavia, não basta a distinção; é preciso uma garantia de que essa vontade verdadeiramente “geral” seja possível de se conhecer e aplicar na prática. Logo, é exatamente nesse ponto que começam os problemas.

A Mística em Rousseau

A crítica que se impõe é que Rousseau atribui uma aura quase mística a essa vontade geral. Portanto, como se fosse uma entidade metafísica capaz de guiar infalivelmente o corpo político rumo ao bem. Ao mesmo tempo, sua teoria desautoriza, ou hostiliza, a mediação por associações, partidos, corporações ou religiões. Pois para ele, tais “sociedades parciais” corromperiam a pureza do querer coletivo.

Porém, como nota o professor Olavo de Carvalho, esse modelo utópico ignora as estruturas reais da convivência humana. Rousseau parece partir da suposição de que o povo, tomado como uma massa de indivíduos atomizados, desprovidos de vínculos intermediários, é capaz de chegar a um consenso moral elevado e lúcido. Logo, basta que “pensem suas próprias ideias”, em vez de deixarem-se influenciar por grupos organizados.

Ora, essa expectativa contradiz tanto a experiência histórica quanto a antropologia realista. Pois as massas não são compostas por indivíduos iluminados. Mas por almas ordinárias, mais inclinadas à confusão do que à sabedoria. E é impossível não serem influenciadas – na maior parte do tempo por mentes maquiavélicas, com uma retórica demagógica extremamente competente em manipular.

Sistema de Castas

Por exemplo, no sistema tradicional das castas hindus, é impensável atribuir à casta shudra — a classe das massas — a condução da vontade coletiva. Espera-se discernimento apenas dos kshatriyas e dos brahmanes. Ou seja, das castas guerreira e sacerdotal, cuja formação espiritual e intelectual as torna aptas a deliberar sobre o bem comum.

Rousseau, ao postular uma soberania baseada na vontade geral formada por todos os cidadãos indistintamente, desloca a autoridade do eixo vertical. Ou seja, de cima para baixo, para um eixo horizontal nivelador. Isso, na prática, equivale a destruir qualquer princípio de hierarquia natural e abrir o campo para o advento da demagogia. Afinal, um povo fragmentado, sem tradição, sem corpos intermediários, torna-se presa fácil do primeiro retórico habilidoso. Logo, daquele que saiba manipular suas paixões.

O Galinheiro entregue à Raposa

A imagem do “galinheiro entregue à raposa” se encaixa perfeitamente. Pois sem vínculos protetores, o indivíduo isolado é frágil, e a “vontade geral” rapidamente degenerará em tirania da maioria. Ou na imposição arbitrária da vontade d’um grupo dominante que se arvora representante do povo. Assim, configuraria-se a “invasão vertical dos bárbaros” como entendia Mário Ferreira dos Santos.

Entendam bem: minha crítica à ideia de “vontade geral” em Rousseau não significa que esteja defendendo os direitos d’uma casta privilegiada. Ou seja, indivíduos que de cima imporiam suas arbitrariedades ao povo. O que critico é justamente como um povo isolado, sem organizações descentralizadas e independentes do governo, se torna facilmente vítima. Aliás, justamente de uma casta de privilegiados que exerçam o poder de forma completamente ilegítima. Portanto, manipulando um povo fraco e desorganizado.

Mais ainda! A própria possibilidade de identificar essa “vontade geral” é envolta em ambiguidade. Copleston é preciso ao notar que se definirmos a vontade geral como “o que é bom para todos”, caímos em tautologia. Neste caso: o bem comum é o bem comum. Mas quem o define?

O Bem Comum em Rousseau

Rousseau não oferece critérios objetivos. Ademais, a solução que propõe é a figura do “legislador” iluminado. Uma espécie de fundador mítico que, embora não detenha poder soberano, orienta os cidadãos a discernirem seu verdadeiro bem. Esse artifício apenas reforça a fragilidade da teoria: a vontade geral, para se realizar, dependeria da ação de um sábio quase profético. O que, para além da ficção, nunca deixou de ser exceção histórica. E, o que afinal, torna a teoria contraditória. Pois da “vontade geral” do povo passamos a vontade única de um iluminado.

De fato, o próprio Rousseau abre a porta ao autoritarismo quando escreve que o cidadão que se recusa a obedecer à vontade geral deve ser “forçado a ser livre”. Essa fórmula, cuja ambiguidade é flagrada por Copleston, usam para justificar qualquer violência estatal em nome d’uma liberdade redefinida. O que deveria ser um espaço de deliberação se transforma numa armadilha retórica. Ademais, na qual considera-se o dissidente escravo de seus apetites. Por isso, compelido a aceitar a lei como se fosse sua. Salta aos olhos o paradoxo! Pois não é liberdade o que preserva-se. Mas, sim, o poder coercitivo do Estado disfarçado sob a linguagem moralista.

Conclusão

Por isso, a vontade geral de Rousseau, longe de ser um ideal de justiça, é um projeto perigoso de reorganização social. Pois elimina a mediação da tradição, da religião e das instituições duradouras. Em nome de uma liberdade abstrata, destrói as liberdades concretas. E ao abolir os corpos intermediários, dissolve os anticorpos naturais da sociedade contra o totalitarismo.

Portanto, a crítica conservadora/tradicional não recusa o bem comum como princípio. Mas exige reconhecimento e defesa por aqueles que têm capacidade moral e intelectual para fazê-lo. Rousseau, ao ignorar essa verdade elementar, propõe uma teoria que, quando aplicada, não conduz à liberdade, mas à servidão disfarçada de virtude.

Artigo originalmente publicado em História & Tradição.



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