A formação dos povos e das fronteiras pelo mundo tiveram impacto significativo das migrações, guerras e conquistas, inclusive no caso do dito ‘povo indígena’
O dia 13 de outubro deste ano é o Dia de Colombo (comemorado) nos EUA. Conquanto é um dia conhecido por alguns como “Dia dos Povos Indígenas”. Como previsto, vemos todas as postagens habituais na mídia — tanto nas redes sociais quanto na mídia tradicional — afirmando o controle de direito da terra por que for indígena.
O que significa ser ‘indígena’?
Isso levanta a questão do que significa ser “indígena” — status geralmente baseado na afirmação de que “nós estivemos aqui primeiro”. Contudo, implicando direito de propriedade. Todavia, esse direito implícito de propriedad baseia-se na presunção de que o suposto grupo indígena apropriou-se da terra em questão. Mas em virtude de ter sido o primeiro a ocupá-la. Ou, em termos mais coloquiais, a propriedade baseia-se na teoria moral conhecida como “achado não fica” (nota do editor: ou “apropriação original”).
Mas há alguns problemas e ambiguidades com a afirmação “nós-estamos-aqui-primeiro” como ela é geralmente feita. De fato, os problemas estão na própria frase e na falta de especificidades que geralmente é apresentada no argumento. Ou seja, quando nos deparamos com a frase “nós estávamos aqui primeiro”, temos que ser muito específicos sobre pelo menos três dos termos contidos na frase. Por exemplo, qual é o significado preciso de “nós”, de “aqui” e de “primeiro”?
No entanto, ao analisarmos esse problema em detalhes, descobrimos que nenhum grupo é verdadeiramente indígena. Por outro lado, se preferirmos a paz à total ilegalidade e à guerra, torna-se necessário reconhecer que, só porque uma população em determinado local não é indígena e deslocou outra população no passado, não significa que a terra em questão esteja simplesmente disponível para ser usurpada.
Quem é Indígena?
Ao abordar o problema da indigeneidade, podemos recorrer a um útil relato ficcional d’uma conversa entre o Chefe Touro Sentado e o Coronel Nelson Miles. Ocorrida no filme “Bury My Heart at Wounded Knee“ (“Enterre meu Coração na Curva do Rio“), de 2007. Essa cena do filme é frequentemente publicada por usuários nas redes sociais sempre que a alegação de indigeneidade tribal circula na mídia. A conversa certamente não aconteceu dessa forma — se é que aconteceu. Mas o próprio diálogo ajuda a ilustrar como surgem as dificuldades quando um grupo de pessoas declara-se indígena.
Touro Sentado: Tire seus soldados daqui, eles assustam a caça.
Miles: Muito bem, senhor, diga-me então, a que distância devo levar meus homens?
Touro Sentado: Vocês devem tirá-los de nossas terras.
Miles: Quais são exatamente suas terras?
Touro Sentado: Estas são as terras onde meu povo vivia antes de vocês, brancos, chegarem.
Miles: Não entendo. Nós, brancos, não fomos seus primeiros inimigos. Por que você não exige de volta as terras em Minnesota de onde os Chippewa e outros o expulsaram anos antes…
Touro Sentado: As Colinas Negras são terras sagradas Dadas ao meu povo por Wakan Tanka .
Miles: Muito conveniente disfarçar suas alegações com espiritualismo. … Não importa o que suas lendas digam, vocês não brotaram das planícies como as gramíneas da primavera e não se uniram do éter. Vocês saíram das Florestas de Minnesota armados até os dentes e atacaram seus semelhantes. Vocês massacraram os Kiowa, os Omaha, os Ponca, os Otoe e os Pawnee sem piedade… e ainda assim afirmam que as Black Hills são uma reserva particular legada a vocês pelo grande espírito. … Vocês conquistaram aquelas tribos, cobiçando suas caças e suas terras, assim como nós agora os conquistamos por um chamado não menos nobre.
A conversa é ficcionalizada e dramatizada. Mas os fatos apresentados, em geral, estão corretos. Por exemplo, praticamente ninguém contesta que os Lakota viveram em Minnesota durante o século XVIII. Assim como provavelmente viveram n’outro lugar — talvez no vale do Rio Ohio — antes disso. Os Lakota só migraram às planícies do norte do atual EUA ao final do século XVIII, reivindicando as Black Hills como suas. Entretanto, outras tribos já viviam nesses lugares antes que os Lakota aparecessem e expulsassem os moradores de cada área.
O Problema do “Onde”
Podemos trocar o dilálogo acima, com os nomes alterados, em inúmeros contextos ao longo do tempo e em todo o mundo. Se recuarmos o suficiente na história, praticamente nenhum grupo de pessoas é nativo d’onde vive. Os árabes não são nativos do norte da África. Assim como os húngaros não são nativos da Hungria. Tampouco os japoneses, nativos do Japão. E assim por diante.
Assim como na Eurásia, a história da América do Norte encontra-se repleta de inúmeras migrações, à medida que as realidades climáticas e demográficas mudavam. Isso aconteceu antes e depois da chegada dos europeus. Por exemplo, os chamados Pueblo Ancestrais expandiram-se e migraram bem antes da chegada dos europeus, deslocando outras tribos no local onde as tribos Pueblo residem. Enquanto os Comanches mudaram-se para as planícies do sul no século XVI.
A lista de migrações semelhantes é longa. Portanto, a primeira pergunta que devemos responder sempre que há alegações de indigeneidade é: “indígenas de ondeexatamente?”.
Indígena de Onde?
Determinar direitos de propriedade — incluindo de propriedade comunal, como aqueles reivindicados por grupos tribais — requer especificidade. Por conseguinte, o mesmo aplica-se à determinação de quem é indígena em cada lugar. Então, claramente, a afirmação de “somos indígenas da América do Norte” é tão específica quanto a frase “somos indígenas da Europa”.
Mesmo falando de forma geral, isso não ajuda. Podemos entender o porquê se aplicarmos o método à Europa. Por exemplo, os irlandeses não são indígenas, digamos, da Bulgária, embora ambos os grupos estejam na Europa. Assim, ser indígena da Europa não denota indigeneidade em qualquer lugar da Europa. O mesmo aplica-se à América do Norte. Conquanto os Arapahoe não são indígenas das terras dos Muscogee, mesmo que ambas as áreas encontrem-se na América do Norte.
O Problema de “Quem”
Isso leva-nos ao segundo desafio no estabelecimento da indigeneidade: de quem exatamente falamos? A própria ideia de que todos os grupos tribais da América do Norte agrupam-se como “índios” é invenção puramente moderna. E que só começou a enraizar-se na década de 1920. Antes disso, poucos membros, digamos, da tribo Navajo considerariam-se parte do mesmo grupo que os da tribo Iroquois. É igualmente absurdo afirmar que um inglês no século XVIII considerava-se francês porque a Inglaterra e a França ficam na Europa. Logo, os detalhes são importantes.
Por outro lado, pelo menos os ingleses e os franceses compartilham alguma história comum documentada. Por exemplo, em termos de instituições romanas, laços culturais anteriores na cristandade e idioma. Esse tipo de unidade e intercâmbio cultural vago era muito mais raro entre os grupos tribais norte-americanos, não muito próximos uns dos outros.
Nos tempos pré-colombianos, certamente não havia algo como a Igreja internacional na América do Norte. Ou seja, capaz de proporcionar uma espécie de unidade cultural entre muitos grupos “nacionais”. Ademais, as línguas eram numerosas e variadas. Tampouco havia qualquer língua escrita amplamente conhecida que facilitasse a comunicação através do tempo e do espaço, como o latim na Europa.
Portanto, qualquer referência a “índios” como grupo genérico tem pouco valor para determinar a indigeneidade em qualquer lugar específico. É inútil dizer que “índios” são indígenas, digamos, do Texas. A pergunta correta é “quais índios?” (E, aliás, onde no Texas?). Isto é, sem responder tal pergunta de forma muito específica, sequer chegamos perto de estabelecer algo para chamar de reivindicação ao status indígena.
O Problema do “Primeiro”
Finalmente, temos que abordar o problema do que significa “primeiro”. Quando invoca-se a frase “nós estivemos aqui primeiro”, “primeiro” significa “habitantes originais” ousomente “aqui antes de vocês”.
Em teoria, esse termo significa necessariamente “nós somos os habitantes originais”. Pois a reivindicação de indigeneidade é essencialmente de propriedade por meio da apropriação original. Porém, na prática, o termo significa somente “aqui diante de vocês“. Pois é impossível provar a indigeneidade com base em histórias inespecíficas sobre o passado distante.
Por isso, muitos que reivindicam a indigeneidade, como o personagem Miles observa na conversa acima, “disfarçam [suas] reivindicações usando do espiritualismo”. Afinal, se tudo mais falhar, basta dizer “nosso deus nos deu esta terra”.
Como demonstrado na dramatização, os Lakota não foram os primeiros a viver na região de Black Hills. Pois vieram d’outro lugar. Mas podiam, com razão, alegar que estavam na área antes que os colonos europeus começassem a reivindicá-la. Certamente conferindo aos Lakota uma reivindicação maior à terra, mas não estabelecendo a indigeneidade1.
Mas, pelas razões listadas por Miles a Touro Sentado, a simples presença do outro não estabelece, de fato, um direito moral à propriedade. Afinal, outra pessoa esteve lá antes dos Lakota, forçada a abrir mão de sua propriedade.
Isso significa que a força faz a justiça?
No entanto, os Lakota e os americanos são ambos conquistadores, que apareceram e expropriaram terras de outros povos anteriors. Quando os americanos chegaram, fizeram com os Lakota o mesmo que os Lakota fizeram com suas vítimas. Miles, na dramatização, reconhece que nenhum dos grupos pode reivindicar moralmente a terra. Pois em nenhum momento Miles estabelece uma justificativa moral para a conquista da região pelo governo dos EUA. Ou seja, em ambos os casos, o conquistador vence por nenhuma virtude além da vitória militar. A única lei em vigor em ambos os casos era a lei da selva.
Então, se ninguém é verdadeiramente indígena, significa que essas terras se tornaram disponíveis para serem conquistadas em todos os lugares? A resposta é “não”, se quisermos viver num mundo onde a conquista ilegal e a carnificina difiram da norma. Em todos os lugares e épocas.
Na prática, o conceito de indigeneidade tem pouco valor em qualquer caso, pois Provar a verdadeira indigeneidade é impossível. Portanto, não é praticável basear qualquer reivindicação de propriedade em quem viveu num lugar, digamos, 2.000 anos atrás. Com o tempo, registros legais desaparecem, acabam queimados ou destruídos d’alguma forma. Migrações ocorrem, e mesmo a memória local e viva não é suficiente como registro de quem viveu onde. Por isso, alguns recorrem à alegação de que “nosso deus nos deu esta terra”. Numa tentativa desesperada de reivindicar a propriedade quando não há mais registros legais.
Busca pela Paz entre ‘Indígenas’
A desesperança da tarefa de comprovar a indigeneidade leva-nos ao imperativo moral de empregar pragmatismo e prudência na busca pela paz. Assim, o melhor que geralmente fazemos é observar quem vive num lugar agora ou no passado recente. O grupo que preenche tais requisitos considera-se a população indígena de fato. Conquanto o contrário é abraçar a conquista, o deslocamento e as guerras de atrito.
Este não é um problema novo, é claro. Em todos os lugares, conquistas, migrações e deslocamentos entrelaçaram-se no tecido da história local. Aliás, isso que a Igreja e as classes dominantes da Europa passaram séculos tentando consertar na Idade Média. Com movimentos como a Paz e a Trégua de Deus, os medievais tentaram estabelecer instituições legais que protegessem os direitos de propriedade e mediassem conflitos sobre reivindicações de terras. A ideia era substituir a guerra pela negociação e arbitragem legal.
Afinal, as guerras eram conhecidas por trazer fomes e massacres epoucos descreveriam tais resultados como “justos”. Sendo assim, pelas mesmas razões, esperava-se que nobres e reis agissem como árbitros e juízes para “manter a paz”. Logo, impedindo que as disputas de terras saíssem do controle.
Mediações e Experiência Histórica
Nesses casos, raramente o objetivo era descobrir quem tinha direito à terra com base n’alguma reivindicação antiga de 1.000 anos. Pois todos sabiam que mediar com base em reivindicações tão grandiosas e tênues pouco contribuiria para proteger a paz no presente. O que importava era manter alguma aparência de ordem e paz. Assim como proteger os direitos de propriedade daqueles que pudessem efetivamente observar como legítimos donos da propriedade em questão.
Essas primeiras tentativas de substituir a guerra aberta pela lei continuam a influenciar o direito internacional moderno. E o reconhecimento de que, pelo menos em teoria, a força não determina o direito. Em muitos aspectos, houve progresso, mesmo que somente pelo fato de que agora é raro ver populações impelidas pela fome a migrarem desesperadamente para terras vizinhas e deslocarem os nativos à força.
Além disso, o crescimento e a disseminação do conceito de propriedade privada ajudaram a institucionalizar reivindicações de propriedade mais precisas, específicas. Mas também não baseadas em alegações vagas d’uma história antiga e improvável.
Todavia, infelizmente, ainda ignora-se com frequência tais princípios, mesmo hoje. Em muitos lugares, a realidade ainda assemelha-se à de quando a cavalaria americana lutou contra os Lakota.
1 A falha em estabelecer uma reivindicação moral aqui foi explicada sucintamente em um poema de Carl Sandburg no qual ele escreve:
“Saia desta propriedade.”
“Para quê?”
“Porque é minha.”
“Onde você conseguiu isso?”
“Do meu pai.”
“Onde ele conseguiu isso?”
“Do pai dele.”
“E onde ele conseguiu isso?”
“Ele lutou por isso.”
“Bem, eu vou lutar com você por isso.”
Publicado originalmente em Mises Wire, do Mises Institute, intitulado “Are Any Peoples Truly Indigenous?“. Traduzido por Roberto Lacerda Barricelli