Matei Visniec é um autor aquém de seu tempo e lugar, brindando-nos com um Rei perdendo a razão, um Bobo muito esperto e os Ratos empáticos numa boba Revolução
Talvez forcei um pouco no “subtítulo” para falar de tudo, sem entregar tudo. Mas, desde que alcance esse objetivo, me satisfaço. Me arrisco com um dos meus melhores amigos ao fazer piada com a rainha. Tal qual Triboulet, tenho meu Luis XII. Consigo fazer os gracejos sem ser executado ou banido numa Revolução. Entretanto, também espero que os amigos leitores adquiram seus exemplares e se arremessem à obra de Matei Visniec. Não se arrependerão.
Inicio com o melhor bom humor possível, mesmo que sem graça, pois dedico ao meu dramaturgo contemporâneo favorito. Sonho um dia poder lhe transmitir a admiração que sinto. Porém, inovei, e não tracei um perfil do autor, mas de seus personagens numa obra. E que obra… prima! Recomendo aos leitores, que leiam, mas que leiam com afinco e vontade, atentos aos detalhes, e sem segurar as risadas.
Na obra O Rei, o Rato e o Bufão do Rei, o dramaturgo romeno Matei Visniec nos premia com personalidades no mínimo extravagantes. Ademais, o Rei parece um dos Luíses de França, possivelmente Luís XII. Por que acho que seja essa a referência?
A Loucura do Rei
O Rei é posto aos ferros na masmorra do próprio castelo, junto ao Bobo, que grita a plenos pulmões apoiar os revolucionários. E Viva a Revolução! Mas não ao rei e ao Triboulet, cuja relação Matei Visniec explora e desenvolve como um universal.
Esse Bobo esperto faz um rei ‘perdido’ servir-lhe de ‘escada’ para espiar as comemorações dos revolucionários, pela fresta da masmorra, chamando-na “janela”. Cada descrição do Bobo esfaqueia a alma do Rei. Aliás, trata-se d’um rei à beira da loucura, com momentos curtos de lucidez. Conquanto tenta entender os acontecimentos, o porquê perdeu seu trono. Encontra-se em tão grande choque, que aos poucos perde a razão, flertando com o estado catatônico.
Sem esperança, admira o mais profundo niilismo. Pois olhar tanto ao abismo, que lhe retorna o ‘olhar’, obviamente enlouquecido, com a alma ferida pela alta traição. Por vezes, trata o bobo com grande reverência, reconhece a esperteza e os bons serviços dele, que mostra-se envergonhado. Não há menção à Família Real. Mas o Rei alcança o ápice da insanidade ao ver-se livre, sem qualquer popular próximo. Por fim, caminha ao local de execução, lá permanecendo muito tempo até compreender que ninguém aparecerá para executá-lo.
Um personagem quixotesco, como o Cavaleiro da Triste Figura, demonstrandouma confusão mental. Assim como pouquíssimos momentos de lucidez, muitos de delírio e grave saudosismo frente à degradação. Todavia, não intenta resgatar ou restaurar algo, mas deixar-se consumir pela loucura. A triste sina de quem não tem a quem ou ao que servir, ou qualquer objetivo. Viktor Frankl chamaria de “falta de sentido”, “vazio existencial”, ou Chesterton nomearia “vazio do tamanho de Deus”.
Restou-lhe o Bobo e os ratos, abordando-nos na masmorra, e mantêm-se expressivamente ao seu lado. Conversas e divagações com tais seres expõe o gradual avanço da loucura, do vazio.
Um Bobo muito Esperto
Voltando ao Bobo! Após gritos de “sou um de vocês” e “viva a revolução”, segue a frustração, o óbvio desencanto, a percepção d’uma traição. Ainda inconformado, em vão tenta nutrir a mínima esperança. Já Triboulet é espalhafatoso, escandaloso… histérico. Mas tão esperto e espirituoso como exagerado e histriônico. Um típico bufão! Em tudo exagerado, inclusive nos trajes e trejeitos, mas em nada tolo.
Ao espiar a “festança” dos revolucionários, compreende que será executado junto ao soberano. Frente a frente com seu destino aparentemente inescapável, reage com cinismo e culpando o rei. Porém, nas vezes em que o louco rei reconhece-lhe os méritos, parece demonstrar certa resistência – ou remorso – e até compaixão. É a única companhia do Rei e também só o tem por audiência. Não há outros a fazer rir. Mas dadas as circunstâncias, não há a quem fazer rir. Isso afeta o Bobo
Triboulet esforça-se por não deixar o Rei chafurdar naquele vazio. Contudo, seu aspecto é provavelmente medonho e deformado. Pois a desculpa que usa para que o Rei sirva-lhe de escada aumenta essa possibilidade. Não consegue abandonar o exagero, notoriamente desesperado para agarrar-se a alguma esperança, principalmente depois de descobrir uma cidade vazia. Logo, restam somente os dois, em meio à trilha de sangue e pedaços de tímpanos que encontra.
Observa o Rei aguardar por dias no local de execução, tentando o animar a sair dali e procurar algo que devolva-lhe o sentido. O Triboulet de Visniec é “viciado em sentido”. Por isso, persegue os motivos de tanta ausência na cidade. Assim, descobre seus únicos companheiros além do Rei, os ratos com os quais a loucura de Vossa Majestade conversa, também tocam instrumentos musicais. Sendo assim, provavelmente tocaram de tal forma que os cidadãos fugiram para o mar. Eis a causa da trilha de sangue e tímpanos.
Matei Visniec: De Mãos Dadas ao ‘Abismo’
Cuidado com o tal do spoiler! Bem, Rei e Bobo seguem o provável caminho dos cidadãos em fuga. Mas os mesmos que fizeram a revolução e executariam ambos? Sim! Porém, o vazio se torna abismo. O Rei necessita perseguir o único objetivo conhecido – mesmo se praticasse de maneira torpe – servir ao povo. Isto é, ir atrás do povo, mesmo terminando decapitado. Manter a cabeça sob os ombros, sem qualquer serventia aos propósitos d’uma vida, era pior que perdê-la, por agir conforme suas ideias.
Triboulet aceita o destino atrelado ao do rei. Ou seja, que sua existência perderia o sentido sem o soberano e sua corte. Portanto, acompanha a Vossa Majestade mar adentro. Aonde desaparecem como neblina ao toque do Sol. Numa simbologia que retorna ao abismo.
Esse desaparecimento pode simbolizar o fim de tudo que personificavam, ou do que dava-lhes sentido, não posso afirmar. Talvez a genialidade de Visniec esteja longe de meu alcance, ou o barulho dos ratos abafe a Verdade, ou seja, a Verdade que os revolucionários não querem ouvir, ou que ninguém queira ouvir, portanto, destrói a audição, afeta aos sentidos e distorce a razão.