As Cruzadas Apostólicas dos Povos Ibéricos ao desconhecido, para expandir reinos e espalhar a Palavra de Deus aos locais mais distantes da Terra
No limiar do século XVI, a Europa começava a desviar-se das grandes certezas medievais e lançar-se nas inquietações d’um mundo novo. tODAVIA, Portugal e Espanha assumiram uma missão ao mesmo tempo audaciosa e fiel. pOIS Enquanto outros povos digladiavam-SE por pequenos tronos, fronteiras mínimas e poder efêmero, os ibéricos rasgavam os oceanos em busca do desconhecido. Todavia, não apenas como aventureiros, mas como cruzados e apóstolos, portadores de uma fé universal e eterna.
Pioneirismo dos Povos Ibéricos
Esse duplo caráter — de inovação técnica e fidelidade espiritual — define o pioneirismo ibérico, por um gesto simultaneamente moderno e medieval. Pois a bússola, o astrolábio, a caravela não se separavam da cruz, do rosário e do ideal apostólico. Mais do que desbravadores, os portugueses e espanhóis se sabiam investidos de um mandato superior: levar ao mundo a mensagem cristã, cumprir o mandato deixado pelo Salvador aos seus discípulos. Ou seja, “Ide e ensinai todas as nações” — e fazê-lo sem distinção de raças, línguas ou civilizações. Em tempos de crescente ceticismo e de fermentos individualistas, Portugal e Espanha erguiam-se como bastiões do ideal teocêntrico, fiéis à missão de que a fé não é dom para poucos. Mas uma herança oferecida à totalidade da humanidade.
O Tratado de Tordesilhas, ao dividir o mundo entre Portugal e Espanha, não podemos ver apenas como um gesto de imperialismo ou ganância territorial. Embora a ambição estivesse, sim, presente — como sempre está quando trata-se de grandes empreendimentos humanos. Houve, claro, os que visavam as riquezas dos trópicos, os metais preciosos, as especiarias, as rotas comerciais. Ademais, muitos cruzaram o oceano guiados por sonhos de glória ou sede de poder.
Mas reduzir todo o movimento expansionista ibérico a essa dimensão é injusto e historicamente limitado. Por detrás das caravelas e das bandeiras, havia também homens que carregavam uma missão mais alta. Homens que aceitavam perigos reais — doenças, fome, solidão, violência — por um ideal que não se media em ouro, mas em salvação.
Heróis Ibéricos
São esses os heróis quase anônimos que sustentam a alma da epopeia dos povos ibéricos. Gente como o padre Manuel da Nóbrega, que deixou o conforto de sua formação europeia para evangelizar os povos do Brasil. Ou como São José de Anchieta, que enfrentou o isolamento, a enfermidade e as adversidades da selva para ensinar o nome de Cristo aos nativos. Esses não buscaram riqueza, nem prestígio, e tinham um propósito que nascia da fé e se realizava no sacrifício.
Apóstolos autênticos de um mundo novo e muitas vezes hostil, em que a espada e a cruz caminhavam juntas, mas nem sempre com os mesmos propósitos. Pois enquanto uns dominavam, outros curavam, e enquanto uns saqueavam, outros ensinavam. Todavia, nesse contraste que se revela a complexidade — e a grandeza — da missão dos povos ibéricos: entre o peso das ambições humanas e a luz silenciosa dos que serviram com alma.
As dificuldades que os navegadores ibéricos enfrentaram. Conquanto os riscos imensos de travessias sem mapa certo, os oceanos desconhecidos, as tempestades imprevistas e os longos meses sem ver terra firme, não explicam-se apenas por bravura ou espírito aventureiro. Havia neles algo mais: uma fé moldada por séculos d’um imaginário teocêntrico, senso de missão que superava os limites do humano e do material. Era essa alma medieval, impregnada de valores cristãos, que dava-lhes a firmeza necessária para seguir adiante quando tudo era incerteza. Logo, se é verdade que havia ganância n’alguns, é mais verdadeiro que muitos partiram com o desejo sincero de servir a algo maior que si mesmos.
Espiritualidade Ibérica em Tempos Difíceis
Num tempo em que a Europa começava a fechar-se sobre suas disputas internas e interesses particulares — Inglaterra, por exemplo, retida em seus próprios conflitos dinásticos e sem lançar-se ao mar. Senão tardiamente, já com espírito bem mais pragmático e comercial. Portugal e Espanha olhavam além do horizonte com ousadia unindo técnica e espiritualidade. O segredo dessa vanguarda não estava apenas na cartografia ou construção naval. Mas na força cultural e religiosa que animava esses povos. A permanência dos valores da Idade Teocêntrica — a crença num Deus agindo na História, chamando povos à salvação — ofereceu coragem necessária aos riscos das descobertas.
Não se pode esquecer o papel extraordinário dos missionários, sobretudo dos jesuítas. Pois com inteligência, cultura e disciplina, ergueram escolas, traduziram línguas, mediaram conflitos e catequizaram com paciência. Muitos deles, como São José de Anchieta ou Antônio Vieira, não apenas evangelizaram, mas defenderam os povos nativos dos abusos de outros colonos. Sendo assim, intelectuais e santos, homens de letras e sacrifício; astrônomos, botânicos, matemáticos e cronistas, buscando compreender os novos mundos em sua complexidade. Assim, esse esforço conjunto uniu ciência e fé, ação e contemplação, não sendo ignorável na leitura das grandes navegações.
Colonização Ibérica
É claro que houve excessos, como em toda obra humana, houve violência, abusos e erros dos povos ibéricos. Mas seria erro ainda maior permitir que esses desvios obscurecessem o todo, pois a colonização ibérica era mais do que processo puramente predatório. Porém, também — e em muitos casos principalmente — uma tentativa séria, mesmo que imperfeita, de integração e elevação espiritual. Os relatos que chegaram da época ultrpassam as guerras e conquistas, e entregam batismos, construções de igrejas, alfabetizações, convívios culturais. Portanto, se houve domínio, houve também doação, se houve imposição, também comunhão.
Por isso, o legado maior de Portugal e Espanha no início da modernidade é além de geográfico ou econômico — é moral e espiritual. Pois os primeiros a ousar com grandeza, e a colocar a cruz e o altar ao lado do leme e da vela. Sua missão apontava para mais do que rotas e lucros: também para uma ideia de humanidade unida por algo que ultrapassa a matéria. E é aí, justamente aí, que revela-se a nobreza dessa aventura: um gesto profundamente humano, mas animado por uma aspiração divina. Logo, com todas as contradições do mundo real, eram os cruzados e apóstolos dos novos tempos.
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.(Fernando Pessoa)
Referências
- História de Portugal, João Ameal, Editora Centro Dom Bosco;
- Portugal – a História de uma Nação, Henry Morse Stephens, Editora Alma de Livros;
- O Império Marítimo Português, C. R. Boxer, Edições 70;
- História da Europa, João Ameal, Volume II, Editora Centro Dom Bosco;
- História do Brasil, Pedro Calmon, Volume I, Editora Kirion;
- História do Brasil, Robert Southey, Volume I, Editora do Senado Federal;
- Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, Synesio Sampaio Goes Filho, Editora Martins Fontes.
Ensaio publicado originalmente em História e Tradição, sob o título “ENTRE A CRUZ E O MAR: A JORNADA ESPIRITUAL DOS POVOS IBÉRICOS“.