A somatória da ideologia progressista com a demonização da aplicação da lei e da ordem, afunda as grandes cidades americanas na Anarcotirania
São imagens difíceis de assistir: uma jovem, Iryna Zarutska — refugiada ucraniana de 23 anos — sentada no trem leve de Charlotte, Carolina do Norte. Absorta em seu celular enquanto volta para casa depois do trabalho. Então, um homem negro, Decarlos Brown, senta-se atrás dela e, repentinamente, levanta-se e a esfaqueia rapidamente com um grande canivete. Poucos minutos depois, ela sangra até a morte no vagão. Outro jovem negro tenta confortá-la e estancar o sangramento com a camisa. Mas o assassino murmura algo sobre pegar “a garota branca” e desce do trem na parada seguinte, apenas para ser rapidamente preso. O que segue-se, demonstra-nos a Anarcotirania em ação.
Antecedentes de Brown
Há vários ângulos nessa história, e abrangem quase todas as questões sociais debatidas neste país, desde raciais até juízes lenientes e segurança no transporte público. Porém, ao menos este caso não envolve controle de armas, pois o assassino usou um canivete. Acontece que prenderam Brown 14 vezes e recentemente o soltaram. Mesmo sem direito a fiança após uma prisão, e apesar das preocupações do advogado de Brown, que sugeriu ao juiz que seu cliente fosse submetido a exame mental.
A questão racial certamente entra em cena, já que a juíza em questão, Teresa Stokes, é negra e concordou em libertar Brown se ele assinasse declaração prometendo comparecer à próxima audiência. A prefeita de Charlotte, Vi Lyles, também é negra e, logo após o assassinato, mal mencionou a vítima. Mas expressou grande parte de sua simpatia pelo suposto assassino, alegando que o “sistema falhou” com Brown e que mais policiamento seria ineficaz Ainda afirmando: “Nunca nos livraremos de problemas como falta de moradia e saúde mental por meio de prisões”.
Para piorar as coisas, a organização de defesa dos direitos dos negros, Black Lives Matter, tinha uma publicação inflamatória em seu site insinuando que o assassinato era justificado. Por causa das injustiças passadas contra pessoas negras. Em suma, não é absurdo dizer que este caso exemplicou perfeitamente a anarcotirania. Ou seja, na qual o governo recusa-se a aplicar suas leis para proteger seus cidadãos e então vira o aparato governamental contra pessoas que cumprem a lei.
Anarcotirania tem lados?
No entanto, os próprios negros podem apontar para estarem d’outro lado da anarcotirania quando as autoridades policiais e os tribunais recusaram-se a protegê-los. Por conseguinte, até acusar brancos que assassinaram negros abertamente, e condená-los. Sendo o caso Emmett Till no Mississippi dos exemplos mais divulgados (e há muitos outros). N’outras palavras, houve muitas irregularidades governamentais por aí, e aconteceu por longo tempo, enfraquecendo a confiança nas instituições de aplicação da lei e justiça.
Há muitas evidências de que a resposta à criminalidade por parte de governos municipais administrados por progressistas é inadequada e, muitas vezes, completamente delirante. Comentando sobre o assassinato de Charlotte em Quillette, Jukka Savolainen escreve que a política de identidade desempenhaum papel importante na forma como os progressistas respondem a esse tipo de incidente:
Pessoas são assassinadas todos os dias nos EUA, mas não trata-se todos os assassinatos como notícia. Alguns são amplificados em peças de moralidade sobre “racismo sistêmico”, enquanto outros descartados como tragédias isoladas. Mas essa discrepância geralmente segue um roteiro identitário ditado por uma visão perversa de justiça social. Quando George Floyd morreu sob o joelho d’um policial branco em 2020, seu rosto apareceu em murais de Berlim a Nairóbi. Breonna Taylor e Michael Brown também tornaram-se nomes conhecidos após suas mortes nas mãos da polícia americana. Mas Tony Timpa e Daniel Shaver — ambos vítimas brancas de força policial letal — permanecem em grande parte desconhecidos no imaginário público. A diferença não é a brutalidade dos incidentes, mas o enquadramento racial dentro do qual são relatados.
Ele continua:
O assassinato de Zarutska também encaixa-se num padrão deprimentemente familiar de violência urbana evitável. Contudo, particularmente após a morte de George Floyd e os protestos Black Lives Matter (BLM) que seguiram-se. Os tumultos “ardentes, mas principalmente pacíficos” que engolfaram as cidades americanas no verão de 2020, deixaram legado político extremamente destrutivo. Isto é, departamentos de polícia desmoralizados, orçamentos cortados, a eleição de promotores que desvalorizaram a aplicação básica da lei e um clima mais amplo de impunidade. Os resultados logo tornaram-se aparentes: pico histórico na criminalidade, incluindo homicídio, furto em lojas e comportamento ameaçador no transporte público. Mesmo com taxas de criminalidade começando a diminuir em relação ao pico de 2020-21, a desordem de baixo nível persiste. Por exemplo, uso aberto de drogas, evasão de tarifas e sensação generalizada de que as autoridades perderam o controle dos espaços públicos.
O vídeo de Charlotte capturou esse clima em miniatura. Como argumentou Kat Rosenfield, “caímos na ideia equivocada de que compaixão e permissividade são a mesma coisa”. Na prática, o tabu contra a insistência na ordem e na decência significou abandonar espaços compartilhados. Ou seja, trens, plataformas, calçadas etc., para as pessoas mais perturbadas e perigosas entre nós. Por exemplo, a saga de Daniel Penny ensinou aos espectadores lição cruel: se intervir, poderão punir-te, então o caminho mais seguro é nada fazer.
Perigos do crime intensificados em espaços de propriedade do governo
Os “espaços compartilhados” de Rosenfield são locais de propriedade do governo, como parques e transporte público, como trens, metrôs e ônibus. Ou criados quando governos tentam impor políticas progressistas de não fiscalização a empresas privadas. Por exemplo, lojas de varejo, no que diz respeito a furtos em lojas. Os primeiros frequentemente envolvem situações de risco de vida, como esfaqueamentos ou tiroteios. Mas sem mencionar assaltos à mão armada e ameaças por parte de jovens que sabem que os outros têm medo deles.
Furtos em larga escala deterioram a qualidade de vida numa comunidade, pois o roubo generalizado no varejo não é crime “sem vítimas”, apesar do que os progressistas alegem. Da mesma forma, quando um encontro aleatório num espaço governamental urbano, como um trem de passageiros, pode tornar-se mortal.
Portanto, as ramificações são enormes para uma sociedade. No entanto, graças a combinação de ideologia progressista e indiferença que acompanha as entidades governamentais quando trata-se de cumprir responsabilidades, é improvável vermos algo para lidar significativamente com esses problemas. Mas especialmente considerando o fato de que a maioria das grandes cidades dos EUA são governadas por progressistas de esquerda. Logo, que acreditam que a aplicação da lei de qualquer tipo é inerentemente racista.
Desvalorização da Ordem Pública
A última vez que o transporte público na cidade de Nova York foi considerado relativamente seguro para seus passageiros ocorreu nos mandatos de Rudy Giuliani e Michael Bloomberg. Porém, os progressistas constantemente criticaram suas administrações por seu policiamento agressivo, especialmente no metrô. Os progressistas opuseram-se especialmente à prisão policial por “pular a catraca”, em vez de pagar a tarifa:
Se a polícia deve intervir quando indivíduos infringem regras consideradas menores — como pular a catraca, fumar no metrô e tocar música num alto-falante em local público — é debate constante desde que nasci. Críticos progressistas da polícia ajudaram a impulsionar um movimento para diminuir a importância da aplicação da ordem pública, culminando em promotores e políticos adotando políticas de não aplicação da lei e descriminalizando tais infrações.
No entanto, muitas, se não a maioria, das pessoas que envolvem-se em comportamento criminoso em empresas de transporte público são fura-passagens, incluindo Decarlos Brown. Como os progressistas acreditam que a fura-passagem liga-se à pobreza e não à desviação social (chamam a prisão de fura-passagens de “criminalização da pobreza”), opõem-se a qualquer fiscalização das tarifas. De fato, Zohran Mamdani — que quase certamente vencerá a eleição para prefeito de Nova York em novembro — quer eliminar as tarifas de ônibus urbanos. Ademais, faria o mesmo com o metrô caso o governo estadual de Nova York não o administrasse. Assim, pode-se imaginar que, num governo Mamdani, a fura-passagem tornar-se-á ainda mais comum — e, da mesma forma, o transporte público e os espaços públicos tornar-se-ão mais inseguros.
Isto não é um apelo para trazer de volta as ações de abordagem e revista da polícia que causaram muita discórdia social. Especialmente entre os nova-iorquinos negros, que pareciam ser os mais parados. Além disso, os autores desta página não hesitaram em criticar o comportamento policial e apontaram que a polícia não tem obrigação legal de proteger as pessoas. Entretanto, quando esse tipo de indiferença por parte das autoridades combina-se com ideologia progressista, altamente tolerante à desviação social, e aceita pelo menos alguma violência criminal, torna-se temporada de caça aberta a pessoas cumpridoras da lei. Inclusive, que encontram-se em locais de transporte público ou outros espaços de propriedade do governo.
Conclusão sobre a Anarcotirania
Nas últimas décadas, os progressistas passaram a dominar os governos das grandes cidades e praticar abertamente sua ideologia, principalmente tratando-se de proteger as pessoas de crimes violentos. Os progressistas acreditam que, como todos os policiais são fundamentalmente racistas, segue-se logicamente que a proteção policial é forma de privilégio branco. Portanto, ilegítima.
Esta situação não mudará tão cedo. Os democratas progressistas dominam a política municipal. Conquanto, dado o clima eleitoral em cidades como Chicago e Nova York, ambas com governos altamente progressistas, pode-se supor que pessoas vulneráveis continuarão vítimas de comportamento predatório e violento. Mas principalmente por parte de pessoas que não têm motivos para temer as autoridades e não enfrentarão a condenação das classes políticas.
Publicado originalmente no Mises Wire, do Mises Institute, sob o título “Anarcho-Tyranny and Danger in Public Spaces“. Traduzido por Roberto Lacerda Barricelli.