Se quer histórias sobre personagens não brancos, não escolha Jane Austen, que escreveu sobre a sociedade num período que mais de 99% da população da Inglaterra era branca
Ao sair da estação de trem em Bath, minha esposa e eu fomos recebidos pelo século XVIII. Havia homens de cartola e de fraque, empunhando bengalas ornamentadas. Assim como mulheres em elegantes vestidos de regência tão grandes que engoliam quase dois metros quadrados de rua; e toucas extravagantes. Afinal, é o 250º aniversário de Jane Austen, que morou em Bath de 1801 a 1806, e a cidade não mediu esforços. O aniversário de Austen é 16 de dezembro, mas as comemorações já duram meses. Pelo menos para alguns.
Comemorações do 250º Aniversário de Jane Austen
Enormes faixas estendiam-se pelas ruas; guias em seus trajes da Regência recepcionavam os visitantes no Jane Austen Centre (um museu que recomendo fortemente). Por conseguinte, as diversas residências de Austen, no número 4 da Sydney Place, no 27 do Green Park Buildings e no 25 da Gay Street, são paradas populares. Assim como as irmãs Brontë, Austen morreu tragicamente jovem, aos 41 anos. Apesar de sua curta vida, deixou seis romances que alcançaram o status de clássicos. Porém, dois deles, A Abadia de Northanger e Persuasão, publicados postumamente.
Mas nenhum ícone inglês pode ser celebrado em 2025 sem um pequeno coro de vozes irônicas juntando-se à tentativa d’uma década de transformar Jane Austen de ícone literário amado em símbolo problemático da “branquitude”. Portanto, que agora é sinônimo de “má”. Os progressistas atacaram as irmãs Brontë, Dickens e, na verdade, praticamente todos os escritores do cânone inglês. Mas os ataques contra Jane Austen soam como os mais ridículos.
Como lamentou recentemente o professor de literatura Kerry Sinanan
“Precisamos ler as comemorações do 250º aniversário do nascimento de Austen no contexto da recriação d’uma cultura branca e nacionalista. Para uma Grã-Bretanha reacionária do Brexit, orgulhosa de seus militares Redcoats e passado imperial — refletido em romance comemorativo, chá da tarde, oficiais da marinha, estética de vestidos de musselina e cosplay”.
Os ataques contra a ‘branquitude’
O Daily Beast publicou uma reportagem de 2020 intitulada “A Batalha pela Branquitude de Jane Austen”. Todavia, observando que “os fãs estão lutando contra o colonialismo e a falta de diversidade das histórias”. A resposta óbvia é: então não leia Jane Austen. Talvez as histórias dela simplesmente não sejam para você. Pois se você quer histórias sobre personagens não brancos, escolha uma história não escrita e ambientada num período no qual mais de 99% da população da Inglaterra era branca.
No Literary Hub, Marcos Gonsalez desdenhou num artigo excruciante intitulado “Reconhecendo a Branquitude Persistente de Jane Austen”. Conquanto para Gonsalez os “romances são grandes problemas para pessoas brancas”. Mas faz sentido, considerando que são sobre pessoas brancas e seus problemas. Acadêmicos há muito tempo criticam a “branquitude” de Austen e lamentam o fato de “pessoas brancas” gostarem de seus livros. Porém, esperam que esses ataques resultem em compras de seus livros. Um deles adotou uma abordagem diferente e tentou reivindicar Austen para o movimento LGBT.
A implacável campanha de difamação inclui tentativas de vincular Austen à escravidão. Todavia, algo especialmente ridículo, considerando que seu irmão participava do movimento abolicionista.
Reverendo Henry Thomas Austen
Segundo a historiadora Devoney Looser, professora da Universidade Estadual do Arizona e autor de “The Making of Jane Austen“, o reverendo Henry Thomas Austen compareceu à Convenção Mundial Antiescravista de 1840, em Londres, como delegado. Tinham abolido o tráfico de escravos no Império Britânico após duas décadas de trabalho de William Wilberforce e seus colegas em 1807. Com a Marinha Britânica policiando os mares para interromper o tráfico. Ademais, aboliram a própria escravidão em 1833, com um milhão de escravos libertados a um custo governamental tão elevado que só quitaram a dívida em 2015.
A Sociedade Antiescravista Britânica e Estrangeira,fundada em 1839, realizou a convenção de 1840 como seu primeiro grande evento. Thomas Clarkson estava presente, assim como Lady Bryon e John Greenleaf Whittier. O nome de Austen não consta na lista oficial de participantes, e por isso Looser ficou “surpresa” ao descobrir que ele estava lá. George Austen, o patriarca da família, tinha vínculos com uma plantação de açúcar nas Índias Ocidentais. Mas “os compromissos e ações da família mudaram profundamente, da conhecida cumplicidade na escravidão colonial para um ativismo antiescravista até então despercebido”.
Jane Austen faz referências passageiras à escravidão em Mansfield Park e ao abolicionismo em Emma. Mas também observou em uma de suas cartas que adorava os escritos de Thomas Clarkson, um dos abolicionistas mais proeminentes do império. “Sabemos que ela lia e importava-se com questões de raça e injustiça racial”, observou Looser. Seu irmão Francis Austen também fez um notável comentário antiescravista em seus diários.
A Família
Henry, um oficial da milícia, clérigo e banqueiro, era o irmão favorito de Jane e um grande divulgador de seu trabalho. Ele casou-se com sua prima em primeiro grau, Eliza, em 1797, após o assassinato do primeiro marido dela durante o Terror da Revolução Francesa. Jane cuidou de Henry até quese recuperasse durante uma doença perigosa. Assim como ele esteve ao seu lado durante sua longa estadia de cama em 1817, que acabou levando à sua morte. Sendo das três únicas pessoas listadas em seu testamento.
Visitamos a Igreja de St. Swithin, nos limites da cidade. George Austen está sepultado no cemitério, e os pais de Jane se casaram lá em 1764; o grande abolicionista William Wilberforce casou-se com Barbara Spooner em St. Swithin em 1797, 45 dias após conhecê-la. Jane Austen teve muitas conexões com os Wilberforces, que frequentaram a cidade durante toda a vida. Historiadores tentaram determinar se eles se conheceram e, embora não possamos ter certeza, o grande abolicionista e o ícone literário estiveram na mesma igreja pelo menos uma vez .
Gratificante ver que aqueles que celebraram o aniversário de Jane Austen não deram um centímetro aos iconoclastas. Os guias eram fãs assumidos e o museu não continha nenhuma das exibições autoflagelantes tão populares hoje em dia. As tentativas sinistras de transformar Austen em um símbolo da escravidão ou da “branquitude” falharam. No entanto, parecem notáveis.
Ironicamente, aqueles que reclamam que Jane Austen torna-se um símbolo nacionalista só têm seus próprios ataques a ela para culpar. Lendo-os, lembro-me das palavras de Austen em “A Abadia de Northanger”
“A pessoa, seja cavalheiro ou dama, que não tem prazer em um bom romance, deve ser intoleravelmente estúpida”.
Publicado originalmente em The European Conservative, intitulado “The Racist Anti-White Smearing of Jane Austen“. Traduzido por Samara Oliveira Barricelli.